Calvin & Haroldo por crianças mais críticas

Esta semana, uma revista de fofocas (a Veja) publicou em sua matéria de capa que é absurda a lei que tornaria obrigatório o ensino de filosofia nas escolas. De acordo com a revista, um país que vai mal em disciplinas como matemática e ciências não deveria se empenhar em ensinar filosofia, que, como todos sabemos, é apenas uma forma de “aumentar a pregação ideológica de esquerda”. Claro. Mas não vou nem entrar nessa questão. O fato apenas me lembrou que, além de eu ter tido uma péssima formação de filosofia no colégio público onde estudei, eu tenho ali, na minha prateleira de quadrinhos, o que considero uma das maiores obras filosóficas do nosso tempo: as tirinhas de Calvin & Haroldo, de Bill Watterson.

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Calma. Antes de você sair em defesa de um grande pensador e de me julgar uma ignorante por essa afirmação, deixe que eu explique. A ligação dos quadrinhos com a filosofia começa com o nome dos personagens. Calvin e Hobbes (do original, em inglês, traduzido por aqui como Haroldo) foram inspirados, respectivamente, no teólogo John Calvin e no filosófo inglês Thomas Hobbes. O primeiro defendia a predestinação e o segundo acreditava na tendência da natureza humana à guerra. Um easter egg interessante plantado por Watterson, talvez porque ele não resista a uma boa ironia – o que, aliás, percebemos em todas as histórias.

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“o aspecto literário da matemática”
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“Sabe, acho que Matemática não é ciência. Acho que é uma religião. Todas essas equações são tipo milagre. Você pega dois números e quando você os junta eles magicamente se tornam um número novo! Ninguém explica como isso acontece. Ou você acredita ou não.”

O grande mérito dos quadrinhos é trazer grandes (e pequenas) questões existenciais em histórias divertidas, cativantes, inteligentes, sarcásticas e o mais importante: acessíveis a todos. Crianças podem ler. Adultos podem ler. E ambos vão gostar. Enquanto Calvin brinca com Haroldo na neve, finge ser um dinossauro, teima com seus pais ou ainda arruma formas de não fazer seu dever de casa, ele te leva a questionamentos intrigantes e você está pensando naquilo sem nem perceber.

Ele não ensina filosofia. Mas os livros de Calvin e Haroldo estão cheias de teorias, conclusões e perguntas incômodas nas quais vale a pena pensar e até expor suas crianças a elas, sem medo. Questionamentos do tipo:

“O que os animais vão fazer agora que derrubaram a floresta para construir casas?? Céus, o que as pessoas iam achar se os animais passassem um trator nos bairros e plantassem novas árvores?”

A inteligência das tirinhas de Watterson também está na construção dos personagens. Haroldo é só um tigre de pelúcia, mas tem mais sensatez que muita gente de carne e osso. Calvin é um garoto com uma grande imaginação e uma cara de pau maior ainda. Isso faz com que seus pais (que não têm nome nos quadrinhos) precisem devolver com argumentos razoáveis as teimosias do filho. O que nem sempre é possível: às vezes eles precisam gritar para mostrar ao Calvin quem são os adultos ali.

“Vocês não me ensinaram nada exceto como manipular cinicamente o sistema. Parabéns.”

Calvin parece um garoto impossível de existir. Mas em tempos de tanta facilidade de acesso à informação, e em que todo mundo nas redes sociais está pronto para desferir opiniões sobre tudo, é natural que nossas crianças tenham a mesma inclinação do personagem para o debate. E aí não adianta vencê-las falando mais alto. As crianças esperam de nós, adultos, argumentos convincentes que respondam às questões levantadas pela inocência e imaginação tão próprias delas. Ou que, pelo menos, tenhamos a sensibilidade de pensar sobre o assunto se não soubermos a resposta. E uma dessas questões é: estamos preparados para criar filhos com esse senso crítico?

Mas talvez a tal revista esteja certa em achar absurda a ideia da filosofia ser ensinada como português ou matemática. Crianças questionadoras acabam ficando iguais ao Calvin: terríveis.