A reinvenção da Bíblia

A vida do escritor freelancer é duríssima. Suas contas vencem no mesmo dia de todo mês e o valor nunca faz o favor de diminuir, embora seus trabalhos escasseiem com facilidade. É em situações desesperadoras desse quilate que a criatividade se desenvolve, de forma que o escritor tem uma ideia que, além da óbvia e gritante questão da sobrevivência, pode lhe render uma boa fortuna.

Então peço que o leitor e a leitora desde já perdoem este escritor que prepara com tanto fervor uma ideia, para dizer o mínimo, calhorda. Algumas vezes, a moral pode ser um empecilho para a sobrevivência ou para o lucro em um mundo como esse, como vocês bem poderão ver a seguir.

O escritor desenvolve a sua ideia e até monta tudo bonitinho em PPT, para apresentar a sua proposta a clientes em potencial. Ele faz várias ligações para os seus contatos e consegue o interesse das pessoas para quem imaginou vender sua ideia, marcando uma reunião com todos no mesmo dia, horário e local — o que não é nada fácil, já que são todos figurões, gente da mais alta casta e influência. Mas faz parte do plano: sua ideia só vale os milhões que deseja se ele tratar com tão insignes clientes.

O dia chega e o escritor tem, reunidos em uma sala de reuniões, os representantes das igrejas cristãs. Entre eles, o papa, bispos católicos, pastores líderes das maiores igrejas e os bispos evangélicos mais famosos da TV.

– Vou ser bem direto com os senhores, já que sou escritor e não publicitário – começa o escritor – A minha proposta é um grande projeto que pode ser do interesse do cristianismo. O que quero propor é reescrever a Bíblia.

– Cê tá de brincadeira? – um dos bispos diz surpreso, enquanto a sala é tomada por cochichos.

– De jeito nenhum, Sua Santidade. Alteza. Excelência. Eminência. Falo sério e vou explicar porque minha proposta é ousada, mas extremamente necessária ao cristianismo!

Ele avança os slides e para numa tela com os dizeres “Deus é amor”.

– Vocês trabalham todos os dias tentando convencer a humanidade de que Deus é amor, certo? – alguns presentes na sala balançam a cabeça afirmativamente – Mas fica difícil fazer isso quando você tem um livro contando como Deus destruiu cidades, promoveu genocídios, enganou pessoas, criou pragas e outras coisinhas que nem os ditadores mais insanos sonhariam em fazer. Se você espremer o Velho Testamento sai mais sangue do que jornal policial sensacionalista. Vocês podem até dizer que contornaram a situação pregando que o Novo Testamento rompia com essas atrocidades por mostrar uma nova aliança de Deus com o povo, mas, cá entre nós? O Novo Testamento também está cheio de trechos problemáticos. Paulo mesmo falou cada bobagem que só Jesus na causa. Sem falar nas contradições mais loucas, como por exemplo, uma hora a Bíblia diz que as leis do Velho Testamento para sempre serão válidas (inclusive em livros do Novo Testamento) e depois diz que não. Tem horas que diz que tudo bem amaldiçoar alguém, tem horas que diz que não pode. Tem horas que diz que Deus aprova a escravidão, tem horas que diz que não, de jeito nenhum. – o escritor faz uma lista interminável de contradições correr na tela – Isso é o que acontece quando um livro é escrito por centenas de pessoas, em que cada um escreve o que quer. O que não vai acontecer se eu reescrever a Bíblia, é claro.

– Esses errinhos dão uma dor de cabeça, você não imagina – diz um pastor, fazendo outros líderes cristãos concordarem com ele – A maioria dos nossos fieis nem percebe, porque só leem os trechos que a gente manda ler… Mas os ateus, ah, os ateus… Esses adoram encher o saco e nos desmoralizar apontando as contradições da Bíblia.

– Malditos ateus – alguém gritou lá do fundo.

– Você pode resolver esse problema dos ateus? – diz o papa, como que subitamente acordando de uma soneca.

– Claro! – diz o escritor, satisfeito por estarem entrando no jogo dele – Vou escrever uma Bíblia à prova de ateus! Uma Bíblia que mostre apenas um deus amoroso, carismático, que não faça birra de criança, quem sabe até com um bom gosto musical, um corte de cabelo mais atual, mas enfim, um deus que seja misericordioso nas escrituras, não só nas palavras de vocês. E o melhor de tudo é que vocês poderão apresentar essa maravilha reeditada, com uma linguagem que não dá sono se você ler mais de três versículos, sem contradições grotescas e com diálogos inteligentes pela quantia módica de 300 milhões de obamas. Antes que vocês achem que é um valor absurdo, deixem que eu explique que esse foi o faturamento dos livros do Harry Potter, o que é um valor justo quando estamos falando da maior e mais importante obra escrita da humanidade!

– Muito legal e tal, mas a gente não pode simplesmente mudar algo que está aí há séculos – observa um dos bispos – Tudo bem que a Bíblia já foi editada algumas vezes, mas estamos falando de reescrevê-la…

– Não vejo problemas – disse um pastor-celebridade – Se eu consigo vender até DVD de sertanejo gospel, vender uma segunda edição da Bíblia vai ser moleza.

– É uma boa ideia, mas precisamos conversar melhor sobre isso – disse o papa – Marcamos uma reunião para o próximo mês. No mesmo dia, mesma hora e mesmo local. E então daremos a resposta final.

Para quem não tinha nada, isso já é alguma coisa. O escritor aceita e fica combinado que se encontrariam dali a um mês. Vamos acelerar um pouco o tempo e ir direto para o dia da reunião, em que os mesmos representantes das igrejas cristãs encontram-se na mesma sala de um mês atrás. O escritor está ansioso.

– Já temos uma resposta – começa um pastor – Decidimos que iremos contratar os seus serviços para reescrever a Bíblia.

– Mas com alguns ajustes, claro – diz um dos bispos.

– Sem problemas, já imaginei que vocês gostariam de dar uns toques para o Deus da Bíblia ficar ainda mais misericordioso – o escritor diz empolgado, já se armando de papel e caneta para fazer as anotações.

– Na verdade, é justamente esse o ajuste que a gente quer fazer – diz o papa – Sabe essa história de reescrever a Bíblia tirando as partes violentas? Pois é, na verdade a gente quer manter essas partes.

– Manter? – o escritor fica com cada músculo do rosto paralisado de confusão – Se é para ficar do mesmo jeito, por que eu iria reescrevê-la?

– Sabe como é, seu escritor, é que tirar essas partes meio que zoa o nosso esquema – diz um dos pastores – A gente usa a Bíblia justamente como apoio para argumentos mais difíceis da pessoa engolir. Não precisa ter uma Bíblia mostrando um Deus 100 por cento amor, é só a gente falar umas duas ou três vezes no culto que os fieis entendem isso. Mas tem que estar escrito no papel que, se não pagar o dízimo ou praticar o adultério, algo horrível vai acontecer com a pessoa. Se não, com que moral a gente pode falar isso?

– Mas a gente amou a sua ideia, sério – um bispo faz questão de dizer, com um sorriso bem simpático – Queremos que você reescreva corrigindo todas essas pequenas contradições que racham a nossa cara de vergonha e arrume essas historinhas mal explicadas. Deixar a coisa toda mais amarradinha.

– Aí aproveita e deixa mais claro algumas coisas – interrompe outro pastor – A gente sente falta de Jesus falando umas poucas e boas contra os gays, sabe? Coloca uns versículos a mais no Velho Testamento contra essa prática nefasta do homossexualismo. Aliás, pode colocar uns capítulos inteiros. Ah, sabe a parte em que Jesus fica furioso quando tem um pessoal lucrando com atividades dentro do templo? Pode cortar. A gente também não gosta daquela parte “dai a César o que é de César e dai a Deus o que é de Deus” porque Deus não tem que ter limites, não é mesmo? Ainda mais agora com a gente investindo pesado na política, tô lançando mais uns três candidatos na próxima eleição.

– Se puder deixar Jesus menos revolucionário também seria bom – diz um bispo lá no fundo – Não acho bom dar ideia para as pessoas acharem que podem questionar e enfrentar os poderosos. Chega me coço todo de pensar nisso.

– Mas é bom manter a parte do “vinde a mim as criancinhas”, – outro bispo faz questão de ressaltar – quem sabe até dizer que tudo bem fazer algumas carícias, que Deus não vê problema nisso, algo do tipo.

– E é claro, serão duas versões: a protestante e a católica – diz um pastor-celebridade – Me dá nos nervos quando misturam evangélicos e católicos. Parece que não respeitam o nosso direito de nos odiarmos mutuamente e de não querer que nos confundam com eles!

– Em uma coisa concordamos! – diz o papa amigavelmente.

– Pois bem, então vou ter que fazer alguns ajustes no orçamento, já que seriam duas versões… – começa o escritor, até que é interrompido por outro pastor:

– Já íamos chegar nesse ponto! Não acho justo cobrar um valor tão extorsivo de homens de Deus. Como recebemos apenas 10 por cento dos fieis, acreditamos que devemos pagar apenas 10 por cento do valor proposto. Assim fica combinado em 30 milhões para você reescrever duas versões da nova obra mais importante da humanidade. Fechado?

Não é exatamente o que o escritor esperava, mas ainda assim é dinheiro para chuchu. Podia custar uma eternidade no inferno, se isso existisse, mas o que importa? A fatura do cartão de crédito e o aluguel já estavam atrasados. O escritor aperta a mão do pastor, recolhe suas anotações e vai para casa tendo certeza que todos que escreveram a Bíblia, inclusive ele, eram grandes filhos da puta.

Moral da história: quer um livro sobre amor? Vá ler Nicholas Spark.

Fotografia da capa: Le vent le cri // Flickr Creative Commons