Vivendo a vida perigosamente

Às vezes nem os mais sangrentos jogos de aventura ou os mais explosivos filmes de ação conseguem satisfazer a sua busca por adrenalina. Se você já não vê mais graça em explodir miolos de zumbis ou resolver os mais perversos enigmas para salvar o mundo ou a própria pele de um vilão demoníaco, tenho uma experiência cheia de desafios para te apresentar.

Neste jogo, sair à noite desacompanhado em uma simples caminhada se torna uma experiência mais assustadora do que clipe de terror do Michael Jackson. O medo de ser assaltado, sequestrado ou levar um tiro fica pequeno perto da ameaça de estupro que ronda cada esquina. E nem precisa ser noite para uma simples caminhada se transformar em uma aventura digna de Indiana Jones: a qualquer hora do dia, andar na rua significa desviar de obstáculos, como cantadas perversas, abordagens invasivas e avaliações cretinas sobre o seu corpo, feitas em alto e bom som para todo mundo ouvir e acabar com o seu dia, detonando a sua barra de energia a cada “quero te chupar todinha”.

Experimente o desafio de sair com vida de um relacionamento abusivo, em um sistema programado para você ser considerado posse de outro personagem. Em vez de ser premiado por tomar a iniciativa e fazer as próprias escolhas, você corre o risco de perder a vida se essa iniciativa for romper com um namorado ou um marido possessivo. Para deixar tudo mais emocionante, nem quando você consegue se livrar desse desafio sua vida está a salvo, pois seu algoz vai estar à solta, só esperando o momento certo de esfaquear você. Nada mais eletrizante do que não saber quando seu marido vai te descer a porrada de novo ou quando seu ex vai te encontrar e atirar em você. Isso, é claro, se você conseguir passar da fase “medo de denunciar o agressor porque a casa é dele e não consigo me sustentar sozinha já que precisei abrir mão de tudo para cuidar dos filhos que tive com ele”.

No final de cada escolha que você fizer, desde o tamanho da roupa que você escolhe para sair, até a profissão ou se vai ter filhos ou não, prepare-se para enfrentar o chefão do julgamento da sociedade. Seus golpes tem o poder de deixar você atordoado e sem saber como prosseguir no jogo, já que você terá a sensação de que, não importa o que faça, estará sempre errado: se você envelhece, é trocado por uma mulher mais nova e fica com a reputação manchada; se você casa com um homem mais velho, fica com a reputação manchada porque só pode ser uma vadia interesseira; se você é feia, vai precisar fazer de tudo para ficar bonita; se é bonita, só pode ser uma mulher superficial, burra e interesseira. Não basta esse quebra-cabeças ser impossível de ser resolvido, ele ainda vai devorar você no final.

Você vai precisar do dobro do esforço para provar que você é habilidoso ou competente em alguma área e que não chegou até ali porque conseguiu algum “cheat” transando com o chefe. Você vai ter que levar uma vida com as mesmas dificuldades e angústias de um personagem normal, mas com o “plus” de tentar lidar com o bombardeio de mensagens e imagens dizendo o quanto o seu corpo é inadequado, como um Tetris de propagandas de “emagreça mais rápido”, “alise o seu cabelo crespo” e “clareie suas axilas” que se acumulam na sua frente até obstruir completamente sua visão. Você vai ter que enfrentar o desafio de uma gravidez, mesmo que isso custe a sua vida, só porque você nasceu e cresceu ouvindo que ser mãe é o propósito da vida de toda mulher, além de ter que ouvir todo tipo de pitaco sobre a sua gestação, como se o seu corpo fosse de domínio público.

perigosa

E, enquanto você tenta se concentrar em superar todos esses desafios e sobreviver a tantos inimigos, como se já não fosse o suficiente, você ainda terá que ouvir, como trilha sonora ininterrupta, piadinhas sobre como mulheres só deveriam pilotar fogão, sobre como uma mulher feia deveria agradecer por ser estuprada, sobre falta de louça para lavar, ou sobre como uma mulher “vadia” pode ser comparada a uma fechadura que abre com qualquer chave. Tudo isso em looping. Uma centena de milhões de vezes. Até você ter quase certeza que já decorou todo o repertório (então aparece um novo absurdo para acabar com a sua concentração e suas forças). Este é um jogo apenas para quem tem nervos de aço.

A única coisa fácil desse jogo é chegar ao Game Over: seu jogo pode acabar com você morrendo pelas mãos do seu parceiro ou de seu ex; na tentativa de aborto clandestino; porque alguém simplesmente não aceitou que você pudesse ser mulher mesmo tendo nascido do sexo masculino; porque você não sobreviveu ao distúrbio alimentar que desenvolveu por não aceitar o próprio corpo; por você ser da cor errada e estar mais vulnerável à violência, abuso e descaso; tudo isso sem poder contar com vidas extras. É só uma e boa sorte.

Para passar por essas e outras experiências arriscadíssimas, nem é preciso dispor de um console, controles, cd’s ou cartuchos: basta ser mulher. É aí que se descobre porque as coisas são tão absurdamente difíceis, porque não há vidas extras e porque não é possível desligar o console ou trocar o jogo para algo mais recreativo e menos apavorante, como um PacMan. Para você, um privilegiado que pertence ao gênero “certo”, talvez a ideia de passar pelos desafios aqui descritos possa mesmo não passar de um jogo; se não um com interface em 3D, ao menos um jogo de imaginação. Mas, para mais da metade da população mundial, essas dificuldades são reais.

Porque, pelo menos enquanto as coisas continuarem como estão, estaremos condenadas a viver perigosamente, em um mundo que, além de não ser seguro, como o calabouço cheio de armadilhas das fases mais cascudas do Super Mario, não foi feito para a gente ganhar. Nunca.

Porque ser mulher é jogar a vida no hard.

Aproveitem e leiam esse texto (em inglês): Straight, White, Male: the lowest difficult setting there is, de John Scalzi.

Fotografia da capa: Steven DePolo // Flickr Creative Commons