As pulgas da minha orelha

Tem coisas que me dão dor de barriga, raiva, profundo mal-estar: a aversão à sexualidade feminina, declarações machistas, homens exercendo poder sobre mulheres ao assediar desconhecidas na rua e isso ser visto como “paquera”, mulheres sendo assassinadas pelos parceiros, mulheres não terem direito ao próprio corpo, embriões terem mais direitos que mulheres, mulheres ganharem menos, mulheres negras ganharem menos ainda, mulheres trans sequer serem aceitas no mercado de trabalho, as prisões dos papéis de gênero, o patriarcado contando todos os dias e em todos os lugares a mesma narrativa: a de que mulheres são interesseiras, oportunistas, mentirosas, vadias, que não podem ser amigas umas das outras. Coisas assim.

Outras coisas me dão uma coceirinha atrás da orelha. Não são coisas tão graves, mas não por isso são menos incômodas. E as pulgas da minha orelha cresceram e cresceram e já não consigo simplesmente ignorá-las. Tanto que até comecei a dar-lhes nomes.

 

1.

A pulguinha Homem-Feminista-Reproduzindo-Machismo é a maior delas. Não que eu ache que homem não possa ser feminista. Eu quero é mais que todo mundo seja feminista, para que um dia o feminismo não seja mais necessário. Mas veja bem: justamente por reconhecer que vivemos em uma sociedade desigual que concede grandes privilégios para o homem cissexual, ele precisa tomar cuidado redobrado com a sua atuação dentro do feminismo.

O homem tem o privilégio de poder falar e de ser ouvido. Ele tem voz em todos os setores da sociedade, é a sua história que ouvimos, é o seu ponto de vista que normatiza o mundo. Aí ele passa a ser feminista e quer fazer o mesmo entre as feministas. Tomar o nosso microfone, dizer como devemos conduzir a nossa ciranda. Cara: não. Tem até os que não se envergonham em apontar o dedo para mulheres e dizer que ELAS são machistas.

Tem mulher reproduzindo machismo? Claro. Mas ela também é vítima. Acusá-la de machismo é, em parte, culpar a vítima. E quando é um homem fazendo essa acusação, a coisa fica ainda pior. Apenas imaginem um grupo de pessoas brancas apontando o dedo para uma pessoa negra e dizendo “ei, você é racista!”. Pois é.

Isso acontece porque o lugar de fala importa. Se você faz parte do grupo que recebe os privilégios de um sistema que oprime outras pessoas, pega muito mal apontar para esses oprimidos e tentar ensinar-lhes como se empoderarem. Soa condescendente e paternalista.

Me perguntaram se os homens feministas então nunca podem apontar o machismo das mulheres. Eu devolvo com outra pergunta: por que esses homens feministas têm tanta “boa vontade” para ensinar feminismo para mulheres – do alto de seus privilégios masculinos –, em vez de usar essa boa vontade para ensinar seus amigos machistas?

Quer escrever sobre feminismo? Ótimo. Mas procure usar o seu privilégio (aquele, de falar e de ser ouvido) para levar o feminismo para espaços masculinos e machistas que ainda têm resistência para ouvir mulheres: escreva textos para homens, dialogue com homens, divulgue seus textos entre seus amigos. Sabe aquele esforço gasto para discutir com uma feminista e mostrar que é você que tem razão sobre um ponto do feminismo? Poderia muito bem ser investido para fazer outro cara refletir sobre o machismo. Assim, só uma dica.

Não que você não possa conversar com feministas e estar entre elas (e é foda ter que fazer esse tipo de ressalva), mas se você está entre mulheres feministas, o seu papel deve ser o de ouvir, nunca o de ensinar. Eu sei, é difícil. Mas ninguém falou que combater o patriarcado (esse sistema que oprime as mulheres) seria fácil, mesmo para você, caro homem cissexual que joga a vida no nível easy. E por mais que seja tentador ser considerado um super-herói entre as feministas, com bem menos o homem cissexual ajuda bem mais: reconhecendo seus privilégios e vigiando a si mesmo diariamente para não reproduzir mais machismo. Ainda mais dentro de um movimento que tem como objetivo empoderar as (atenção!) mulheres.

Todas as vezes em que eu expus esse meu ponto de vista, percebi uma enorme resistência dos homens. Começam os “mas”, os “poréns”, que logo  desembocam naquele ponto da conversa onde o cara começa a te catequizar. Os homens estão tão acostumados a acharem que têm sempre razão e que eles têm o papel de nos ensinarem, que não percebem que esse tipo de postura é totalmente incompatível com a de um homem feminista. O privilégio é um negócio que cega.

E aí, se apontamos essas coisas, alguns ficam na defensiva e nos respondem apontando os nossos privilégios (!), os nossos comportamentos machistas. Dá uma coceira louca essa tentativa de tirar o foco deles para colocar nas mulheres quando convém e, ao mesmo tempo, manter o homem sempre no foco, no protagonismo. Sim, é meio paradoxal.

E essa pulguinha me coça tanto a orelha justamente porque faz a gente parar de falar do quanto o sistema nos fode e nos mata para, de novo, colocar o homem no centro da discussão. Sempre o homem. E mais uma vez ficamos invisíveis.

 

2. 

A pulga do Feminismo-Conveniente é aquela que não sei se existe ou se é só uma coceira onde não há nada. Porque não é ruim que mais pessoas sejam feministas, certo? Por isso, não sei se estou certa por me incomodar tanto com pessoas usando discursos feministas para aquilo que convém a elas.

Um exemplo: homens que usam o discurso feminista de empoderar as mulheres para que elas possam ser independentes financeiramente e livres sexualmente. Isso não parece ruim até você perceber que o cara levanta essa bandeira porque a mulher livre e independente é justamente o tipo de mulher pelo qual ELE sente atração.

E aí eu me questiono se tudo bem ter pessoas se dizendo feministas não por ser a coisa mais humana e decente a se fazer, mas porque um mundo com mais mulheres usando roupas curtas, gostando de transar e pagando o motel parece um cenário mais atraente para esses caras. Afinal, eles estão lutando pelo feminismo e, independente de suas intenções, já é alguma coisa, não?

Outro incômodo (muito parecido com esse acima) é perceber pessoas se tornando feministas para se sentirem mais confortáveis em suas posições e em suas escolhas.

Eu não me sinto confortável no feminismo. E não me sinto porque acho que o feminismo não serve para eu ficar tranquila comigo mesma. Pelo contrário, serve para me deixar desconfortável, para perceber que as coisas como estão não estão nada certas, para perceber meus próprios privilégios, para que eu veja que o mundo é machista e, se eu deixar, o machismo vai falar através de mim, mesmo que eu não queira.

É desconfortável ver que por ser homem é preciso tomar cuidado com o seu discurso. É desconfortável ver que para nós mulheres as coisas são sim mais difíceis, mas não porque o feminismo nos tenha colocado no lugar de vítima, e sim porque foi esse papel que o mundo nos reservou. É duro encarar a realidade de frente, mas se não reconhecermos a posição desprivilegiada em que estamos, como vamos nos empoderar e reverter esse quadro? É desconfortável ver que ainda temos que lutar por coisas que deveriam ser básicas. É desconfortável ter que explicar dez, cinco, vinte vezes por que aquele discurso é machista, racista, transfóbico.

É desconfortável, mas como eu já disse, o feminismo não é um passeio no parque.

Então fico bem incomodada quando vejo as ideias feministas sendo usadas como uma carta coringa para interesses próprios acima de qualquer coisa. Tenho visto e lido coisas que me levam a crer que, se você torcer bem o feminismo, você consegue usá-lo para defender qualquer coisa. Inclusive os seus privilégios. E não sei se o discurso feminista ser apropriado para outros fins é uma coisa positiva.

Quando o feminismo começa a ser conveniente para quem se beneficia da opressão, tem alguma coisa errada aí. Mas só acho.

 

3.

Também tem a pulguinha Mulheres-Anti-Feministas, mas essa me dá mais tristeza do que coceira. Vejo algumas mulheres – que inclusive se consideram feministas – atacando outras feministas para ficarem bem na fita com os homens. “Eu sou feminista, mas sou legal porque defendo o machismo e os privilégios de vocês homens, olha, olha!”

Fico triste com isso porque é todo um esforço para serem aceitas por um discurso que também as oprime. Acaba não sendo muito diferente de mulheres chamando as outras de vadias para deixar claro que são diferente delas.

A questão é que tudo o que você faz para ser aceita por aquilo que esmaga as outras sem dó serve para deixar você mais perto da boca cheia de dentes que ainda vai te mastigar e te cuspir para fora. Essa aceitação que as mulheres que atacam feministas buscam é, na verdade, uma armadilha.

Já critiquei essas mulheres abertamente, mas agora me sinto mal por isso. Apontar dedos e jogar mulheres na fogueira é uma coisa que o patriarcado já faz – pra quê eu faria o mesmo? Certamente esse discurso delas deve ser combatido e acho válido empreender todos os esforços para apontar o que há de errado nesse comportamento (que muitas de nós pode acabar reproduzindo), mas eu particularmente comecei a evitar personalizá-las como inimigas, por mais desonestas que elas estejam sendo.

A minha vontade é apenas chegar para elas (desculpem por soar condescendente) e dizer: gata, faz isso não. Tanta raiva pelas feministas – que não, não tentam impor nada; pelo contrário, lutam e se constróem de modo a se empoderar e ajudar outras mulheres a fazerem o mesmo – não faz muito sentido, sabe? Não somos nós as inimigas – e sim essa porcaria de patriarcado que por acaso vocês estão ajudando a defender.

Também me incomoda o movimento de apontar dedos e marcar a ferro e fogo pessoas que tenham pisado na bola (ou sido completas babacas preconceituosas). Porque acredito que seria muito mais construtivo encarar as críticas (tanto quem faz quanto quem recebe) como uma oportunidade de aprender, e não como uma forma de excluir, de rotular essa pessoa como má e ponto final. Afinal, ninguém precisa ser machista pra sempre – pelo menos é nisso que eu prefiro acreditar.

 

4.

Se existisse a tal da carteirinha feminista, a minha já teria sido confiscada há muito tempo. Certeza. Ainda bem que o feminismo é um movimento passe livre: todos podem ser – e eu espero que sim!

Mas o feminismo é um sapato apertado de calçar. Primeiro, pela forma como você passa a ser vista pelas pessoas cheias de preconceito com o movimento. Ser mulher feminista atrai todo tipo de ofensa e agressão: são os anticorpos do patriarcado rejeitando a nossa presença no mundo, que ele faz de tudo para manter do jeito que está. Segundo, porque o feminismo parte do princípio básico do questionamento. Não só questionar o mundo, mas questionar a si mesma. O tempo todo. Manter-se vigilante.

Então espero que os incômodos que expus neste texto não sejam vistos como uma tentativa de deslegitimar o feminismo de ninguém. Mas se feminismo é questionamento, não se pode abrir mão de questionar a si mesmo sobre a sua própria participação dentro do feminismo. Sobre o que se fala e o que se faz. Acho que falta a algumas pessoas pesar a mão na consciência um pouco. Na pressa de emitir opinião e ocupar o microfone, poucos se ocupam de pensar um pouco e ouvir (sim, também estou olhando para você, homem feminista).

Cada pulguinha dessas parece ser pequena, mas vieram montadas em um monstro gigantesco. E não podem ficar no caminho de quem quer derrubá-lo.

Este foi um texto sobre feminismo. Se você não entendeu muito bem, talvez você também queira ler este texto.

Fotografia: play4smee // Flickr Creative Content