Estava lá, numa tabela logo na primeira página do caderno. Segunda: português, matemática, história. Terça: português, matemática, geografia. Quarta: matemática (aula dupla) e CFB (saudosa sigla que dava nome às fantásticas ciências físicas e biológicas). As matérias estavam lá. Por elas, eu era levada a acordar todos os dias, vestir meu uniforme e, carregando o caderno no braço (porque mochila eu não usava nem tinha), ia lá, passar quatro horas atrás daqueles muros. As matérias estavam lá, mas não eram elas (somente elas) que me eram ensinadas.
A escola era tão natural quanto o mundo que me cercava. Da mesma forma que eu sabia que precisava almoçar ao meio-dia, que noite era hora de dormir, que pai e mãe se obedecia, que precisava fechar a janela e tirar as roupas do varal para não molhar quando chovia, eu sabia que tinha que ir para a escola e isso era ponto indiscutível.
Foi na primeira série que eu me perguntei pela primeira vez “pra quê isso?”. A melhor resposta que encontrei para mim mesma é que eu precisava saber das coisas para caso alguém na rua viesse me perguntar. Juro. Achava que aprender a fazer contas, a separar as sílabas e a decorar as capitais brasileiras só era importante para que eu não passasse vergonha quando um estranho me abordasse na rua perguntando “com licença, você saberia me informar quanto é oito vezes sete?”. Eu tinha que saber.
É claro que depois eu mudei de ideia e passei a acreditar que estava ali por outros motivos. Mas ainda assim, eu não estava certa. Só muito tempo depois de passar pelas carteiras duras daquele lugar, pelas horas e horas copiando conteúdo do quadro, pelas chamadas, pelos colegas perguntando: “isso vai cair na prova?” é que me dei conta do motivo pelo qual eu estava ali. Das coisas que a escola realmente precisava me ensinar.
Português, matemática e CFB eram apenas um pretexto.
O que a escola me ensinou foram as regras do jogo. Ensinou, principalmente, como segui-las. A escola me ensinou que o mundo é esse eterno perguntar e ter que dar a resposta certa. Quem responde certo ganha pontos, quem responde errado perde. Acima de tudo, a escola me ensinou que existe o certo e o errado – e o certo é o que está escrito no livro.
A escola me ensinou as posições que cada um tinha no jogo. O peso de cada peça. Enquanto cabia a alguns poucos determinar as tarefas e os horários, punir ou recompensar, fazer as perguntas e dizer quem estava certo ou errado, a outros cabia o papel de seguir o enunciado, de obedecer os horários, de fazer o que era preciso para conseguir as recompensas. A escola me ensinou, a troco de notas altas, estrelinhas e até medalhas de melhor aluna, que era assim que eu precisava ser: comportada, esforçada, pontual, adequada.
Adequar-se.
A escola me ensinou a ser uma pessoa adequada. Usar uniforme, estar com as unhas limpas, sentar direito na carteira, ter o caderno em dia, não chegar atrasada, usar as cores certas de caneta, ter letra legível. Os cadernos de caligrafia eram os espartilhos que eu usava, onde eu forçava colocar o traço da minha letra (uma parte de minha individualidade) dentro daquelas linhas. Espremia, esticava, tudo para ficar redondinha, nem grande e nem pequena demais, com a curvinha do éfe feita do jeito certo. Meu deus, até a curvinha do éfe. Talvez a caligrafia tenha sido só um pretexto para ensinar que eu, assim como aqueles traços, precisava andar sempre dentro da linha. Seguir o padrão.
A escola também me ensinou a entrar na fila certa: meninos ou meninas. Sua estrutura era propícia à separação: separação por gênero, por idade, por turmas. Os grupos que se formavam ali dentro também faziam parte da lição e era importante aprender a aceitar isso desde cedo. Os perdedores, os atléticos, os bagunceiros, os certinhos, os que moravam longe. A escola e sua experiência dentro dela me ensinaram os rótulos que eu precisaria usar durante toda a minha vida em sociedade.
Desde cedo, a escola me preparou para o mercado de trabalho ao me ensinar a importância de bater ponto todos os dias no mesmo lugar, ficar horas sentada fazendo algo completamente desinteressante e obedecendo os superiores. A escola me ensinou a ser participativa (ou, como o mundo corporativo prefere dizer, proativa), o que significava mostrar interesse e gastar mais energia do que o necessário para cumprir tarefas sem sentido e completamente desmotivadoras. O trabalho braçal de copiar conteúdo do quadro era um treino para acostumar meu cérebro e meu corpo para a repetição exaustiva e mecânica de atividades que mantinham as coisas funcionando do jeito que sempre foram. E para que continuassem assim.
A escola me ensinou que somos números: aqueles, que respondemos na hora da chamada, e aqueles, que medem a nossa performance ao decorrer do ano letivo. Eu precisava me acostumar a ser um RG ou um CPF antes mesmo de ter um, a decorar todos esses números agregados à minha pessoa como quem decora o número da chamada. Eu precisava me acostumar aos números do meu salário ou ao número de contatos nas redes sociais me dizendo se eu era boa ou ruim. Eu precisava me acostumar a ser rankeada. E a buscar sempre, acima de tudo, ser a primeira.
A escola me ensinou a ler, escrever, fazer contas, identificar cobras venenosas e conhecer o nosso sistema solar. Enquanto isso, me ensinava a encarar de forma natural a estrutura do mundo, porque a própria escola foi feita à sua imagem e semelhança. A escola era tão igual ao mundo para o qual me preparava que, quando eu saísse dali, eu sequer sentiria a diferença.
Tantos anos dentro da escola (pré-escola, primeira série, segunda, terceira, quarta, quinta, o ginásio inteiro mais o ensino médio, sem contar faculdade) não só me prepararam para o mundo que me esperava lá fora – mas, principalmente, me ensinaram a aceitá-lo. Os anos escolares foram me amaciando, fazendo com que eu me acostumasse a essas regras, fazendo com que eu admitisse que desta forma as coisas funcionavam.
A escola é uma mini-sociedade, em todos os seus vícios.
Ela nos vicia em regras e padrões de uma sociedade que será o grande muro onde nós, os tijolinhos, depois seremos encaixados. A escola nos prepara para aceitar uma sociedade viciada em manter as coisas do jeito que estão. A escola, que se manteve a mesma durante séculos, fazendo as coisas do mesmo jeito que eram feitas em outra época já desconectada da nossa, ajuda a manter o ciclo vicioso de uma sociedade que nos alimenta com seus conceitos estáticos para que possamos alimentá-la de volta, reforçando essa estrutura feita para não mudar nunca.
A escola, assim como o mundo em sociedade que nos cerca, é uma construção. Não só os muros feitos para conter os alunos, mas tudo que a torna escola, da chamada às provas de final de ano. E tudo que é construído pode ser desconstruído. E que seja desconstruído para que vejamos quais são as peças que mantém esse mundo antiquado funcionando. Que seja desconstruído para ver o que podemos jogar fora. O que não serve mais. Que seja desconstruído porque nada deve ser sagrado, nem escola, nem mercado de trabalho, nem casamento, nem família – porque quando algo é sacralizado e reverenciado, é para que não questionemos.
E, depois de tanto tempo tendo que dar as respostas certas, talvez tenha chegado a nossa vez de fazer perguntas à escola. Como ela precisa ser para que as coisas possam mudar de verdade?
E pode anotar: esta questão sim, vai cair na prova.
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A imagem que ilustra este post integra uma coleção de desenhos feitos em 1899 e 1910. As ilustrações foram criadas por artistas franceses da época imaginando como seriam as coisas no ano 2000. O espantoso dessa imagem é que eles acertaram em cheio: essa pode tranquilamente ser a representação de uma turma de ensino médio da nossa década. Tirei daqui.