Evoluímos até aqui pra isso

Os que vieram antes de nós percorreram um longo caminho para que pudéssemos chegar até aqui. Pularam muitos galhos, comeram muita frutinha, migraram muitos quilômetros, caçaram muito mamute, afiaram muitas lâminas, caíram muito até aprender a andar sobre duas pernas, pegaram muito piolho, morreram muito no inverno, decoraram muitas cavernas, dominaram muitos territórios.

Foram milhões e milhões de anos para chegar até aqui. Aquele primeiro macaquinho inteligente que era zoado pelos colegas na floresta por ser muito “nerd” não imaginaria que seu legado iria tão longe. E que depois saíria de controle.

Porque atravessamos milhões de anos de evolução e o melhor que muita gente consegue ser é uma pessoa desagradável. Evoluímos até aqui para isso. Para ter gente se esforçando, literalmente, para ser desagradável. Para andar na contramão do que sugere a palavra evolução. Evoluir: melhorar, crescer. Qualquer australopitecus sabe disso, gente (afinal, eles evoluíram). Sério.

Talvez seja melhor cancelar esse negócio de evolução. Talvez ela mesmo tenha se cancelado. Talvez a evolução tenha olhado pra nós há muito tempo e ela mesmo decidido: “não me envolvam nisso, tchau”.

Porque evoluímos até aqui para nos incomodarmos com a foto que os outros tiram da própria cara feia e continuar seguindo essa pessoa para ver mais fotos de cara feia. Evoluímos até aqui para não gostar de alguém, achar que as coisas que essa pessoa fala têm gosto de cocô, e ainda assim continuar acompanhando só para passar raiva e continuar se lambuzando de bosta, voluntariamente, mesmo odiando isso.

Evoluímos até aqui para achar que somos super-heróis que têm inimigos e que temos que desejar a eles vida longa apenas para que vejam nossas vitórias, que muitas vezes são coisas para as quais eles sequer ligam, como conseguir emagrecer uns dois quilos.

evolucao

Evoluímos até aqui para que um ser humano adulto, minimamente consciente, acorde um dia e decida que vai ser babaca porque esse é o estilo que ela julga charmoso nele, embora vá odiar nas outras pessoas.

Evoluímos até aqui para reclamar da reclamação dos outros. E reclamar de quem reclama delas também. Evoluímos até aqui para fazermos piadinhas quando morre alguém famoso. Ou para exigir que só possa lamentar essa morte quem tenha a carteirinha de fã autenticada em três vias.

Evoluímos de cuidadores da própria vida para fiscais de cu alheio.

Evoluímos até aqui para criar redes sociais e todo tipo de ferramenta digital para que possamos mostrar o quanto somos ridículos, porque só mostrar isso presencialmente não era o suficiente.

Evoluímos até aqui para reparar nas pequenezas, para implicar com coisas bobas, com cada vírgula, para discutir seriamente se o certo é bolacha ou biscoito. Aparentemente não há mais para onde irmos como espécie, já que podemos voltar nossas existências para apontar, criticar e condenar as coisas que os outros fazem que não interferem em nada em nossa própria vida.

Evoluímos até aqui para sermos a pessoa que chuta a poltrona da pessoa da frente no cinema. Para ser o mala que não se importa se está incomodando o vizinho do lado. Para ser o animal que acha tranquilo invadir o espaço daquela desconhecida na rua com um comentário rude e não solicitado sobre o corpo dela.

Evoluímos até aqui para fazer cagada e depois dizer que foi tudo uma grande brincadeira. Em nossa defesa, é preciso reconhecer que evoluímos maravilhosamente como espécie especialista em negar os próprios erros, em recusar-se a limpar as próprias merdas e a driblar as consequências dos nossos atos.

Evoluímos até aqui para lutar em causas ditas nobres, que objetivam nos transformar em uma humanidade melhorada, mas achamos ok ofender e ameaçar outras pessoas dentro dessa mesma causa. Evoluímos até aqui também para achar que essas lutas são besteira e que está bom do jeito que está. Melhorar pra quê, se podemos ser bichos desagradáveis, detestáveis, deprimentes?

Evoluir pra quê, se ser uma pessoa melhor não dá dinheiro, prêmio ou tanta atenção quanto ser uma completa babaca?

Evoluir pra quê, se não é da nossa conta qual será a próxima espécie que irá preencher a escala evolutiva humana, e que se essa próxima evolução da humanidade for um animal que envergonharia até o mais selvagem dos chimpanzés, não é problema nosso?

Ser uma pessoa melhor pra quê, né? Tentar se desenvolver é o que faziam os primitivos, os quase-macacos, os afiadores-de-lança. Somos desenvolvidos demais, agora o negócio é piorar, é ver o quão baixo conseguimos chegar.

Ser uma pessoa melhor pra quê?

Deixamos lá atrás, talvez com os primeiros homo sapiens, a capacidade de evoluir? É só isso que conseguimos ser depois de alguns milhões de anos de evolução?

De qualquer forma, isso nos ajuda a entender a lacuna que ficou em nossa escala evolutiva. Sabendo que ia dar merda, o elo perdido se escondeu. De vergonha.

Leia também: A pessoa que não quero ser.

Imagens do filme Planeta dos Macacos, 1968.