Um bocado de perguntas inconvenientes

“Podemos julgar nosso progresso pela coragem dos nossos questionamentos e pela profundidade de nossas respostas, nossa vontade de abraçar o que é verdadeiro ao invés daquilo que nos faz sentir bem.”

– Carl Sagan

Aprendi que fazer perguntas é mais importante do que ter as respostas prontas. Enquanto para alguns o embaraço de uma pergunta sem resposta é insuportável, a ponto de criarem religiões que deem uma resposta, e consequentemente, um pouco de paz, para outros o inquietante é não poder fazer perguntas.

Claro que questionar o mundo, a nossa sociedade e a nós mesmos não é tarefa fácil. A angústia de lidar com os questionamentos que surgem nas nossas cabeças diante das dificuldades da vida, ou até mesmo de coisas simples, que de tão naturalizadas parecem não exigir – e em alguns casos até impedir – que sejam explicadas, é uma chama que não se apaga. É constantemente alimentada pela curiosidade, pelo fascínio com o mundo, pela vontade de mudar as coisas, pela necessidade de viver em um lugar melhor, sendo alguém melhor.

Essa angústia é o que me move. Se chego a uma ideia que me deixa em um estado confortável comigo mesma e com as coisas ao meu redor, passo a desconfiar. Mas essa sou eu.

E acho que não é por acaso que nos ensinam, desde sempre, que desconfiar, descrer e questionar são coisas ruins. As instituições dominantes da nossa sociedade se favorecem disso, pois assim conseguem prolongar sua existência e expandir sua dominação através dos tempos. Tentam sufocar qualquer questionamento que exponha a estranheza de seus princípios, ou apontar para o fato de que elas não são sólidas e imutáveis e necessárias para a nossa espécie como querem que acreditemos.

Mas ousamos perguntar. Cutucamos certezas, balançamos estruturas que foram historicamente blindadas contra críticas. Eu mesma já escrevi textos questionando instituições ditas sagradas e intocáveis, como a família, o casamento, o amor romântico, a escola, a masculinidade, o patriarcado, a igreja. E quase sempre as reações, tão parecidas, nos fazem pensar em outra pergunta, fundamental para entender as forças que buscam manter as coisas do jeitinho que elas estão: é tão frágil essa instituição e as coisas que ela defende que simples perguntas são capazes de derrubá-la?

Teriam dogmas um coração, veias e ossos que precisariam, frágeis, de uma proteção tão fervorosa daqueles que neles acreditam contra aqueles que têm a ousadia de questioná-los?

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O astrônomo Neil DeGrasse Tyson, apresentador do remake da série Cosmos de 2014, originalmente apresentada pelo cientista Carl Sagan, nos anos 80. Recomendo fortemente tudo que venha dos dois.

 

Chega a ser desonesto querer calar as críticas à religião com o argumento de que questionar uma instituição milenar dominante – e opressora não poucas vezes durante a história da humanidade – é um ataque pessoal. Eu nem te conheço. Eu não me importo com o que você acredita ou pensa, ou ainda como se comporta na sua vida pessoal, independente dos dogmas que sua religião defenda. Quando falo da religião, sobretudo o cristianismo, não falo das crenças ou rituais que você adote para a sua vida, mas de uma organização poderosa que historicamente massacrou quem quer que discordasse dela, que endossou a escravidão, que perseguiu praticantes de outras religiões, que ainda hoje restringe o direito das mulheres, que se posiciona contra o direito de cidadãos de se casarem civilmente independente de sua orientação sexual, que quer impedir o avanço da ciência em pesquisas que podem ajudar a melhorar a qualidade de vida de milhões de pessoas com diversidade funcional, que é absurdamente irresponsável ao ensinar seus fiéis a não usarem métodos contraceptivos, preservativos ou, no caso de líderes evangélicos, de incentivarem meninas a não tomarem vacinas que as protegeriam do HPV.

É então que surge outra pergunta: essa igreja pode fazer tudo isso impunemente e se alguém ousa questionar (ou até mesmo escrever igreja com “i” minúsculo, o horror) acaba se tornando o verdadeiro algoz?

Recentemente, um programa de TV que se propõe a mostrar as coisas mais fascinantes sobre o Universo descobertas pela ciência foi criticado por criacionistas que dizem que o programa não deveria afirmar que o Universo tem bilhões de anos, e que deveria apresentar as teorias criacionistas com o mesmo tempo e igual importância. Por que um programa científico deveria mostrar uma teoria completamente baseada em um dogma religioso, como se tivesse alguma validade? Por que acham que a religião deve ter esse privilégio? Por acaso alguém os estaria obrigando a ensinar a teoria da evolução dentro de suas igrejas, para eles acharem que têm o direito de fazer um pedido tão absurdo?

É esse tipo de recusa a ceder aos privilégios que a religião dominante sempre teve que são encarados, por alguns devotos seguidores, como ofensa pessoal. Além disso, quão autocentrado é imaginar que tudo é sobre você? Alex Castro escreveu:

“se você está feliz com seus deuses e com as suas escolhas, então, eu fico sinceramente feliz por você. e te pergunto: por que veio se enfiar logo aqui, em plena conversa de uma pessoa insatisfeita com outras pessoas insatisfeitas? o assunto não é você. não é de você que estamos falando. não queremos te convencer de nada. fica em paz. e, se as suas escolhas algum dia começarem a te oprimir, você sabe onde estamos. sinta-se sempre livre para juntar-se a nós.”

Interferir nos ritos pessoais de alguém, ou perseguir, ameaçar e discriminar pessoas religiosas (que é o que acontece hoje, por exemplo, com quem segue religiões de matriz africana, que não têm seu culto tão respeitado quanto o das pessoas cristãs) é BEM diferente de colocar dogmas na mesa e questioná-los, sobretudo se são, de alguma forma, prejudiciais à sociedade.

Se a religião não tentasse se meter em áreas que não são de seu domínio – a ciência, a política, as leis, as vidas das pessoas indiferentes a ela – eu não teria nenhum problema com ela. Mas enquanto ela for um problema, eu vou questioná-la e fazer perguntas inconvenientes, como essa: quem vai me calar?

Fotografia da capa: Vincentiu Solomon.