Fazer tudo certinho

Comecei a ler o livro Garota Oculta, a história real de uma garota egípcia, Shyima Hall, que foi vendida pelos pais aos 8 anos para trabalhar como escrava e depois levada de forma ilegal pelos seus raptores para os Estados Unidos. Pesado, né.

(Lembrando que essa história não aconteceu em uma época distante. Shyima nasceu em 1989).

Um trechinho já nas primeiras páginas me chamou particularmente a atenção:

“Eu mal conseguia respirar. Minha mãe tinha realmente me abandonado. Ela não gostava mais de mim? Como isso foi acontecer? O que eu havia feito para merecer aquilo? Claro que a resposta era: nada. Eu não tinha feito nada, além de ser uma garota feliz que amava a própria família. Descobri que era verdadeiro, no meu caso, o ditado: ‘Coisas ruins acontecem às pessoas boas’.”

O negócio é que Shyima vivia, com seus pais e dez irmãos, uma vida de extrema pobreza no Egito. Ela conta que “no Egito, a escravidão não era uma situação rara nas famílias da nossa condição social. Para os meus pais e para aquela família, isso era parte da vida.”

Então quando ela diz que não precisou fazer nada de errado para acabar naquela situação, ela nos lembra que, se você pertence a determinada classe social, raça ou gênero, você pode fazer tudo direitinho e mesmo assim coisas ruins vão acontecer a você.

Isso me lembrou imediatamente de um texto excelente da Camila Pavanelli, do blog Recordar, Repetir e Elaborar. Vou copiar aqui embaixo um trechinho, mas gostaria que depois você o lesse inteiro, neste link.

“Minha avó costuma me dar um conselho-conceito dentro do qual se encaixam inúmeras coisas:

‘Filhinha, faz tudo direitinho!’

Sempre gostei desse conselho justamente pela generalidade da fórmula: as coisas a serem feitas direitinho eram todas aquelas que meu superego assim determinasse.

(Por exemplo, é preciso pagar os impostos direitinho.)

Eu costumava pensar que fazer tudo direitinho seria suficiente – fazer as coisas direitinho era o que a vida exigia de mim.

Fazendo tudo direitinho, pensava eu, tudo ficaria bem.

Depois da leitura de certo livro, porém, passei a questionar o conselho de minha avó.

Em É Isto Um Homem?, Primo Levi conta como sobreviveu à sua estadia em um campo de concentração na Alemanha nazista.

Comecei a ler o livro imaginando que os momentos mais aterrorizantes seriam as descrições de execuções em câmaras de gás. Mas, como costuma acontecer em toda experiência de leitura digna desse nome, minha expectativa foi subvertida: o que mais me impressionou não foram os momentos em que pessoas eram mandadas explicitamente, diretamente para a morte, por assim dizer.

O que mais me chocou foi a descrição das pessoas que morriam no campo por doença e/ou exaustão, após quatro ou cinco meses de trabalho forçado – sem que fosse necessário enviá-las para o gás.

Para morrer no campo, você não precisava ter feito nada de errado: pelo contrário, bastava fazer tudo direitinho.

Se você fizesse tudo direitinho, isto é, se seguisse estritamente as regras impostas pelos alemães – comendo exatamente a ração de comida que lhe era destinada (em vez de roubar algum alimento a mais) e trabalhando com afinco todos os dias (em vez de enganar seu superior e se poupar) – você morreria em poucos meses. Os alemães criaram aquelas regras justamente para que seu correto cumprimento levasse à morte. Assim, bastava que os prisioneiros fizessem tudo direitinho – coisa que a imensa maioria fazia – para que morressem dentro de pouco tempo.

Sobreviveram apenas aqueles que conseguiram, em alguma medida, burlar o sistema.”

 

Quando se é parte de um grupo oprimido, seguir as regras direitinho não vai adiantar nada. Aliás, pode ser justamente aquilo que vai levar a pessoa oprimida à destruição muito mais rápido.

Você pode nunca ter cometido um crime, nunca ter feito nada de errado, mas se nasceu pobre e negro numa favela, os tiros dos policiais vão ter muito mais chances de encontrar o seu corpo. Com Cláudia foi assim. Com Amarildo foi assim. Com o menino Eduardo foi assim. Com tantas outras pessoas foi e continua sendo assim.

Isso acontece porque as regras não funcionam para beneficiar todos que as cumprem. As regras (e aí estou falando não apenas das leis, mas do conjunto de normas, tácitas ou expressas, que regem a nossa sociedade) funcionam para continuar beneficiando um grupo bem específico de pessoas (independente se fazem “tudo direitinho” ou não), enquanto pune e toma direitos de outras.

Tem outro exemplo ótimo que ajuda a entender bem essa questão e saiu do seriado “Everybody Hates Chris”, ou “Todo Mundo Odeia o Chris”. É no episódio do teste vocacional (em que o próprio Chris Rock aparece como orientador) que vemos a brilhante cena:

Chris (que é um garoto negro) está conversando com seu amigo Greg (um garoto branco) sobre a treta em que recém se meteu por causa do resultado do seu teste vocacional.

“Eu sei como é isso”, diz Greg. “O cara me disse que eu posso fazer o que eu quiser. É muita pressão. Quer dizer, mesmo se eu quiser fracassar eu não consigo!”

“Isso deve ser duro, hein”, ironiza Chris.

Chris então conclui, em pensamento: “foi naquele momento que eu percebi o que realmente significa ser branco”.

Então algumas pessoas não precisam se esforçar muito para que coisas boas aconteçam a elas – porque as regras do jogo estão a seu favor. Da mesma forma, outras pessoas não precisam se esforçar nem um pouco para que coisas ruins aconteçam a elas – porque as regras do jogo funcionam justamente para prejudicá-las.

E fazer as coisas “direitinho” não tem nada a ver com isso.

Imagem do clipe “Another Brick in the Wall“, Pink Floyd.