A mudança é a única constante do Universo

Na leitura de Design as art, do designer e artista italiano Bruno Munari, o seguinte texto sobre objetos gastos me chamou a atenção (tradução livre minha):

Vá até a cozinha e abra a primeira gaveta que alcançar; é provável que você encontrará uma colher de madeira usada para para mexer sopas e molhos. Se a colher tem uma certa idade, você verá que ela não tem mais sua forma original. Ela mudou, como se um pedaço dela tivesse sido obliquamente cortado de sua ponta. Parte dela estará faltando.

É seu uso contínuo que dá à colher sua nova forma. Esta é a forma feita pelo fundo da panela ao ser constantemente esfregada na colher, até eventualmente nos mostrar a forma que uma colher para mexer sopa deveria ter.

Este é o caso (e há diversos) em que um designer pode aprender sobre que forma fazer um objeto que ele está desenhando, especialmente se é algo destinado a entrar em frequente contato com outras coisas, e que portanto chega a uma familiar forma de acordo com o uso que é feito dele.

Bruno Munari, “Wear and Tear”, do livro “Design as art” (1966)

Em outro texto, Munari fala da inspiração na natureza para a criação de objetos e esculturas que possuem estrutura contínua, como os nervos das folhas ou a geometria dos minerais:

Formas naturais são continuamente modificadas durante o crescimento por seus arredores. Teoricamente, todas as folhas de uma única árvore deveriam ser idênticas, mas isso pode acontecer somente se elas puderem crescer num ambiente completamente destituído de influências externas e variações. Todas as laranjas deveriam ter o mesmo e idêntico formato esférico. Mas, na realidade, uma cresce na sombra, outra no sol, outra num espaço estreito entre dois galhos, e elas acabam saindo diferentes. A estrutura interna se adapta e dá a vida a diversas formas, todas elas da mesma família, mas diferentes.

Bruno Munari, “Continuous Structures”, no livro “Design as art (1980)
Bruno Munari fotografado por Maria Mulas, 1980

A arte do passado (pintura e escultura) nos acostumou a ver a natureza como estática: um pôr-do-sol, um rosto, uma maçã, tudo estático. Pessoas vão à natureza procurar por imagens como essas coisas estáticas, quando na verdade uma maçã é um momento do processo da semente até à árvore, florescimento e fruto. Na natureza, nada é estático. A ideia de natureza fixada a 1º de junho de 1969 ou um rosto fixado aos 32 anos e 8 dias é completamente irreal; bastante distante do fato de que, se pararmos a natureza, jamais seremos capazes de entendê-la.

Bruno Munari, “The Tetracone”, no livro “Design as art”(1966)

A realização como a busca de um lugar fixo para ocupar ou a identidade como uma imagem estática que nos defina são ilusões perigosas que com frequência nos fisgam.

Mesmo objetos fabricados em série, padronizados e artificiais, transformam-se ou ganham características únicas enquanto envelhecem e interagem com o ambiente ou com outros objetos. O uso desgasta, deixa cicatrizes.

Quando olhamos para um cenário, para um objeto ou para uma pessoa, inclusive nós mesmos, estamos diante do retrato de um único momento de um processo que está longe de terminar. Um momento depois e podemos ver, apenas se observarmos com muita atenção, que o que estava ali já não é mais o mesmo.

A natureza não trabalha com preservação: a mudança é a única constante no Universo, pois é nela que o espaço se abre para deixar o tempo brincar.

Enquanto tentarmos desacelerar e limitar mudanças espontâneas por meio de um símbolo estático, nunca estaremos aptos a entender ou agir de uma forma realmente efetiva.

Alexander Dorner, curador de arte alemão

Aprofunde a leitura*

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