A narrativa da casa invadida

Os paralelos entre “Parasita”, filme de Bong Joon-Ho e “Casa Tomada”, conto de Julio Cortázar.


“Parece um filme argentino”, lembro de ter dito quando assisti ao filme Parasita. Engraçado e absurdo, na medida que me agrada. Lembrei de Relatos Selvagens, onde as situações também escalam até explodir em violência, até encostar no véu que separa o real do surreal. Mas foi outra a referência argentina que me trouxe esse sentimento. Foi Cortázar.

No conto Casa Tomada (1946), Julio Cortázar conta a história de dois irmãos que vivem, apenas os dois, em um casarão onde “podiam viver oito pessoas sem se molestarem”. O narrador descreve a imensidão do espaço: a casa conta com uma biblioteca e três quartos grandes nos fundos, e um único corredor, com uma pesada porta de carvalho, que separa (ou liga) esses cômodos à parte dianteira da casa, com a sala, os quartos dos irmãos e, virando à esquerda, o banheiro e a cozinha.

O irmão que narra a história chega a dizer que ele e a irmã quase nunca iam além da porta de carvalho, exceto para as rotineiras limpezas. Ou seja, ignoravam aquele espaço, na maior parte do tempo. Assim levavam seus dias, até que algo estranho acontece:

Recordarei sempre nitidamente porque foi simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando em seu quarto, eram oito da noite e, de repente, eu me lembrei de levar a chaleira de mate ao fogo. Fui pelo corredor até chegar à porta de carvalho, que estava entreaberta, e dava a volta ao cotovelo que levava à cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som vinha impreciso e surdo, como o tombar de uma cadeira sobre o tapete ou um abafado murmúrio de conversação. E o ouvi, também, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que vinha daquelas peças até a porta. Atirei-me contra a porta antes que fosse demasiado tarde, fechei-a violentamente, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava do nosso lado e, além disso, passei nessa porta o grande ferrolho para maior segurança.

Fui então à cozinha, fervi a água da chaleira e, quando voltei com a bandeja do mate, disse a Irene: 

– Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos.

Deixou cair o tricô e me olhou com os seus graves olhos cansados.

– Você tem certeza?

Disse que sim.

– Então – disse, recolhendo as agulhas – teremos que viver neste lado.

– Julio Cortázar, trecho de “Casa tomada”

O absurdo ou fantástico nesta história não está tanto na natureza dos invasores (não sabemos o que ou quem invadiu a casa), nem na razão do incidente (não sabemos o porquê, tampouco os irmãos se preocupam em investigar), mas no comportamento dos personagens, que aceitam a situação de precisar viver na metade da frente da casa, porque óbvio, tomaram a parte de trás, o que mais podemos fazer?

Casa tomada tem com Parasita uma evidente semelhança: ambas trazem a narrativa da casa invadida, como o título das obras bem sugerem. Esse tipo de história muito me interessa, especialmente por trazerem padrões que se apresentam das mais variadas formas. Prato cheio para interpretações.

Julio Cortázar em sua casa e um invasor do lado de fora

Lembro de Mother!, de Darren Aronofsky, que guardo na mesma prateleira de Casa Tomada e de Parasita: uma história que também se passa numa casa enorme que, graças à galopante necessidade de amor e atenção do marido-escritor (ou: Javier Barden interpretando Deus himself), logo se vê tomada por um bando de invasores sem-noção (nesse caso, representando a própria humanidade), para desespero da esposa (ou: Jennifer Lawrence como mãe-natureza) que se descabela com a destruição que os invasores trazem e pelamordedeus, dá pra parar de sentar na minha pia??

Para além das metáforas bíblicas que Mother! fortemente sugere (tá fácil de pescar mesmo para quem não frequentou catequese), foi nesse filme que entendi com mais clareza a casa como um espaço simbólico, um elemento que representa nossa mente. Pelo menos, foi a leitura que passei a adotar para esse tipo de história. 

Cortázar me oferece motivos para fazer a relação entre casa e mente, como no seguinte trecho do conto: “gostávamos da casa porque, além de espaçosa e antiga (…), guardava as recordações de nossos bisavós, o avô paterno, nossos pais e toda a infância”.

A mente é nosso verdadeiro endereço. Nela moram nossa consciência, nossas memórias, tudo o que constitui aquilo que podemos chamar de “eu”. Inclusive as coisas que não temos coragem de encarar e jogamos na escuridão do nosso porão.


Nos filmes de terror, a casa é o espaço onde as merdas acontecem. Inclusive, quanto maiores as casas, maiores as chances de sustinhos e tragédias. Não me lembro de nenhum filme apavorante que se passe numa kitnet. O que interessa aqui, no entanto, é que a casa normalmente aparece como o símbolo de um espaço íntimo, que deveria ser seguro. Nessas fantasias de medo, essa segurança se rompe com a aparição de algum elemento estranho: um fantasma, um assassino, uma criatura, um invasor. Uma ameaça oculta vivendo bem ali, justamente onde os personagens mais se sentiam seguros! Isso grita horror!

A narrativa da casa invadida representa o medo do desconhecido que existe dentro do nosso mundo conhecido. Que formas pode ter? O que quer? O que pode fazer conosco? Aí reside a tensão.

Em Parasita, somos conduzidos a ler a história pela lente não dos moradores “verdadeiros”, mas dos “invasores”, o que é uma forma surpreendente e brilhante de apresentar a narrativa. Acompanhamos a família Kim arquitetando planos para ocupar os espaços da casa e da intimidade da família rica, por meio dos trabalhos de professor particular, motorista e governanta. Sem me aprofundar nas relações parasitárias que se estabelecem entre a família pobre e a família rica, já analisadas à exaustão em diversos textos e vídeos que ressaltam as questões de classe e poder que o filme revela, quero aqui destacar que Bong Joon-Ho traz uma nova camada para a narrativa da casa invadida: enquanto a família rica continua a viver inconsciente do processo de “invasão” da casa pela família de trambiqueiros, esta família, por sua vez, também não vê que não são os únicos a parasitar a mansão. No porão secreto da casa, o marido da antiga governanta vivia confinado, às custas do trabalho da mulher e dos recursos da casa.

Este personagem, mais até do que a família com objetivos escusos, representa o desconhecido que habita esse mundo conhecido, o lar. O filho mais novo dos donos da casa o vê de relance algumas vezes: uma figura escondida nas sombras da escadaria, à espreita. O “parasita” comunica-se usando código-morse, controlando do porão o acender e apagar da lâmpada do corredor. Só pode ser um fantasma! É quando esse personagem sai das sombras que os problemas começam a se revelar, primeiro para a família Kim, depois para os donos da casa, até ganhar escala e explodir em forma de violência irracional, sangue e gritaria.

Faca de ponta e meu punhal que corta

E o fantasma escondido no porão

– Belchior, em “Pequeno mapa do tempo” dando spoiler de “Parasita”

O problema surge da escuridão, do que está abaixo, fora da vista e da consciência. Em Parasita, surge do porão/bunker que a antiga governanta manteve em segredo da família Parker. Em Casa Tomada, dos fundos da casa, do que está além da porta maciça de carvalho, que por um tempo serve como uma defesa contra esse insondável, essa ameaça que se manifesta por barulhos estranhos de um outro (ou outros) ocupando aquele espaço; mas a porta de carvalho não é capaz de deter a invasão por muito tempo. O que é oculto, quando se revela, toma a casa por inteiro. Expulsa seus moradores de lá.

nota: em Mother! também há um porão, um lugar escondido que a mãe descobre e onde ela encontra meios de colocar a casa abaixo, consumida em chamas. Esse lugar subterrâneo e secreto aparece constantemente como esconderijo daquilo que pode te destruir, a morada da sua maior ameaça.

Em Parasita, isso se dá de forma trágica, com a lambança sangrenta do final, e com a emblemática cena em que a casa da família pobre alaga após uma tempestade, com água saindo até da privada. Novamente, o que estava oculto (esgoto) rompe-se com força da escuridão e expulsa os moradores dali.

Em Casa Tomada, essa expulsão se dá por uma passividade absurda: primeiro, os irmãos tentam adaptar sua rotina ao fato de agora só terem metade da casa para viver; depois, quando ouvem os barulhos tomando o resto da casa, saem correndo, tendo a rua como única saída. Simplesmente aceitam que perderam a casa para esse invasor que nem sabem o que é.

Apertei o braço de Irene e a fiz correr comigo até a porta, sem olhar para trás. Os ruídos ficavam mais fortes, mas sempre abafados, às nossas costas. Fechei de um golpe a porta e ficamos no saguão. Não se ouvia nada agora.

– Tomaram esta parte – disse Irene. O tricô descia de suas mãos e os fios iam até a porta e se perdiam por debaixo dela. Quando viu que os novelos tinham ficado do outro lado, ela largou o tricô sem ao menos olhá-lo.

– Você teve tempo de trazer alguma coisa? – perguntei-lhe inutilmente.

– Não, nada.

Estávamos com o que tínhamos no corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no guarda-roupa do meu quarto. Agora era tarde.

– Julio Cortázar, trecho de “Casa tomada”

o escritor Julio Cortázar

Ler a casa dessas histórias como metáfora para a mente me deixa apavorada; especialmente com o conto de Cortázar: o que poderia ser tão intolerável para que o narrador não tivesse coragem de cogitar encarar? Por que ele sequer tentou conferir o que era? Talvez porque já soubesse. E, justamente por saber, não conseguia enfrentar.

Nas histórias, os moradores são expulsos, ou, como o narrador de Cortázar, preferem perder a casa do que lidar com o que morava ali. Mas como fugir quando o oculto, aquilo que é intolerável de encarar, habita em nós?

A narrativa da casa invadida, nessa leitura, aponta para uma questão: talvez o que devesse dar medo não seja exatamente o que se esconde nos nossos porões, mas a atitude de preferir ignorar ou de esconder. É nessa recusa de encarar as próprias sombras que elas acabam – eventualmente –  vindo à luz, de forma geralmente devastadora para o dono da casa.

O isolamento nos coloca em um movimento de nos voltarmos para dentro; mais do que nos recolhermos à nossa casa, isso significa nos voltarmos para o nosso interior. Às vezes, dá medo. Mas o que está ali dentro, escondido no escuro, também é parte de mim. Por que eu deveria me assustar? O que acontece se eu olhar para essa parte de mim que eu mesma ocultei? 

As histórias absurdas ou de terror dificilmente seriam absurdas ou de terror se oferecessem aos personagens essa alternativa, em vez de matar ou fugir ou destruir a própria casa para lidar com os invasores. E se, em vez disso, pudéssemos olhar para o que nos assusta dentro de nós? Talvez o medo desaparecesse se tentássemos entender o que dizem os ruídos atrás da porta de carvalho – ou se conseguíssemos decifrar a mensagem que uma lâmpada pisca em código-morse, em algum corredor escuro da nossa mente.


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