Existir é incrível

A regra é clara: não vai ficar tudo bem sempre, porque é da natureza impermanente da existência (sobretudo a humana) alternar ciclos de tudo bem e tudo péssimo. Já tinha faraó no Egito sonhando com vacas gordas e vacas magras para nos lembrarmos disso.

A nossa época é opressora sobretudo porque não nos deixa viver esses ciclos. É preciso estar tudo lindo, tudo odara, 100% do tempo. Cercados de propaganda de gente sorrindo, vivendo as delícias de um intestino regulado ou de um crédito consignado, não podia dar em outra coisa.

Passando no metrô, vejo uma propaganda com a imagem de uma jovem branca magra e sorridente fazendo yoga. O texto: tenha uma mente mais equilibrada! E algo no jeito EXCESSIVO que a moça sorria me fazia pensar em tudo, menos em equilíbrio mental. Psicopatia, talvez. Porque se essa mulher está meditando e rindo alto desse jeito, ela está meditando errado. Mas talvez eu precise escrever um texto apenas sobre isso, sobre os sorrisos psicopatas das propagandas. Porque sem condições alguém ver tanta graça em fazer seguro de carro.

Aí que estou num persistente período de tudo péssimo. E olha que nem precisei entrar na ciranda de bad vibes do Twitter ou acompanhar as notícias para ficar assim. É só parte do processo: às vezes ando segura com uma direção bem definida, passos determinados, velocidade constante; às vezes fico paralisada, em dúvida se estava o tempo inteiro seguindo o mapa de cabeça pra baixo, repentinamente desconfiada do meu próprio senso de direção, totalmente desorientada. Você não?

Nesses momentos, é difícil me conectar com a própria escrita. Nada na minha lista de temas me anima. Fui pedir ajuda aos leitores. No meio das sugestões, a Gabriela me perguntou: “e o que te anima?” A Taíssa quis saber: “pequenas coisas que te deixam feliz”. Me senti desafiada pelas duas. Não tem hora mais difícil de lembrar do que nos motiva e anima do que quando a gente está estirada no chão querendo apenas sentir pena de si mesma.

O yoga, que está tão na moda que já foi apropriado pela propaganda e a qualquer momento deve virar tema de novela da Glória Perez, é o que tem me ajudado a centrar a cabeça no que importa, quando a tendência dos pensamentos é voar perigosamente para as possibilidades irreais que o ego insiste em alimentar.

Uma das coisas que o yoga me ensinou foi encontrar conforto no desconforto.

Às vezes você vai precisar estar equilibrada apenas sobre uma perna, meio agachada, com os braços enrolados e o tronco torcido para o lado direito, numa dessas posições esquisitas que te fazem sentir como uma pintura cubista. Não é confortável. Não é legal. Você sente que vai cair a qualquer instante. Você se pergunta como foi que entrou nessa. Você não tem certeza se aguenta mais um segundo daquilo. Mas aí você respira, e força cada um dos seus neurônios a se concentrar em inspirar e expirar. 

Uma vez na posição desconfortável, o máximo que você pode fazer é  tentar se encaixar na postura de uma forma que respirar seja possível e você consiga passar por ela. É um treinamento mental para a vida. Porque as posições ruins vão vir. Inevitável. Mas você precisa se agarrar a algo para não se despedaçar no processo. E, na maior parte das vezes, respirar é a única coisa que estará totalmente sob o nosso controle.

Eu não consigo controlar uma porção de coisas: a percepção dos outros sobre mim, a repercussão do meu trabalho, a situação política, os sentimentos das pessoas com quem me relaciono, o prazo dos Correios, a renovação daquela série que amo, o sucesso ou fracasso dos meus projetos. Mas pelo menos a minha respiração eu posso controlar – e isso já é ENORME.

Uma vez, o Seinfeld entrevistou o Jim Carrey num café. Foi o primeiro episódio de Comedians in Cars Getting Coffee. Jim Carrey, em suas habituais jim-carreyices, começou a brincar com o ato de pingar adoçante no café. Ele não poderia fazer isso como um ser humano normal. Não: ele tinha que colocar a caneca no chão, ficar de pé em cima da mesa e tentar acertar, de toda essa distância, uma única gota de adoçante certeira dentro do seu café. Ele conseguiu, e comemorou como se fizesse uma cesta de três pontos! 

O que realmente me impressionou foi o que veio a seguir. Como se não fosse nada, ele disse para seu entrevistador (e para mim): “viu só, precisamos de muito pouco para ficarmos felizes com nós mesmos”.

Uou.

Então, quando tentei responder mentalmente às perguntas da Gabriela e da Taíssa, experimentei o desconforto e angústia de não saber o que me anima. Algo ainda me anima? Não achava resposta. Talvez porque estivesse pensando nas coisas grandes. No que não depende de mim. No que me motiva, mas que não posso controlar.

Tive que começar a escrever esse texto para descobrir. E então eu soube.

Algo pequeno que me anima: deitar no chão.

Só isso.

Claro, deitar em posição de savasana me anima porque é a última pose do yoga. Significa que posso relaxar, fechar os olhos e não vou mais precisar me arregaçar fazendo torção disso, inversão daquilo, prancha, etc. Também me anima porque é algo muito simples, que eu posso fazer sem precisar de mais nada ou ninguém. Eu só preciso de chão (há em boa parte da superfície do planeta) e de mim mesma.

Deitar no chão me motiva, acima de tudo, porque é nesta posição, totalmente entregue, colada à superfície da Terra, com a barriga virada para as estrelas em algum lugar lá no alto, sentindo o planeta girar sob mim, é que me conecto com uma percepção que muda tudo: existir é incrível.

Ainda que tudo esteja uma merda, que tudo que eu faça esteja dando errado, que eu tenha sido abandonada, profundamente machucada, não saiba o que fazer, eu deito no chão e me lembro que, ao menos, eu existo. E existir, por si só, é incrível.

Porque existir significa respirar, significa sentir coisas, ainda que nem sempre sejam agradáveis. Existir significa ter memória, consciência e uma percepção única sobre o universo. Eu existo neste planeta, nesta época, dentro de uma carcaça humana, e mais especificamente dentro desse corpo.

A existência é algo que acaba rápido, sabemos. Por isso tememos a morte, por isso a dor de perder alguém, que no fundo é como olhar um pouco para o nosso próprio fim, que virá em breve. 

A gente se acostuma a esse negócio de existir, não quer que acabe, nos apegamos a esse corpo, a isso que aprendemos a amar e a chamar de “eu”. Mas, justamente por não ser um estado duradouro, existir é incrível. Porque só quem existe consegue respirar, ter um orgasmo, ler um livro, cheirar um gatinho. Só quem existe consegue sofrer, chorar, ter medo e dor. Só quem existe pode morrer.

É arbitrário dividir as experiências entre aquelas desejáveis e aquelas evitáveis. Não há sentimento melhor ou pior; quem criou essa hierarquização fomos nós. Há apenas essas sensações flutuando no espaço e vez ou outra nos atingindo. A única coisa que precisamos fazer, enquanto seres que existem, é sentir o máximo que pudermos.

É deitada no chão, corpo e mente completamente quietos, tão próxima da posição de cadáver, é que consigo ver com clareza que mesmo os momentos dolorosos fazem parte dessa experiência incrível que é existir. 

E uma das condições da existência é que nada permanece num único estado para sempre, como parecem ser os sorrisos das propagandas. Há ciclos. Há a contração, mas depois o relaxamento. Há o inspirar, mas depois o expirar. Há o sucesso, depois o fracasso. Há a fartura, então a escassez. Há avanços, e há o retrocesso. Há a vida, mas depois vem a morte. Há o choro, mas, em algum momento, há também o riso.

Como diz uma das falas do filme Vanilla Sky: “o doce não é tão doce sem o amargo”.

Porque pode vir uma tempestade e arrasar tudo, molhar seu chão inteiro,  seus cadernos novinhos, encharcar seus livros e arruinar seu piso (aconteceu mesmo, rs). Mas mesmo as tempestades mais longas terminam. Até lá, só nos resta viver as tempestades. É o que a existência está nos oferecendo no momento, não é? Então BRING IT ON.

No meio do caminho entre não querer escrever nada e chegar a esta linha que digito agora, me reconectei com minha motivação para ter escrito tudo isso, assim como minha motivação para escrever tudo que escrevo: para eu lembrar, a mim mesma no futuro, do que importa. 

Então, se você não se incomodar, deixa eu me dar um recadinho rápido.

Aline, você existe. Se você não se lembra de por que isso é incrível, tá na hora de você deitar no chão de novo. Agora.

Edward Hopper, estudo para a pintura Morning Sun, 1952.

Texto originalmente publicado em março de 2018, edição #18 de Uma Newsletter. Assine grátis para receber as próximas edições no seu email: