Feito água

cada pessoa é um universo inteiro

Um segundo e S. já não está no mesmo lugar. É uma praça, há bancos, árvores, do outro lado da rua há um posto de gasolina, por perto há uma estação do metrô. Mas S. não pisa no mesmo chão das pessoas que passam ali.

S. está em outro continente. S. está no alto de uma montanha. Não, S. sequer toca o chão.

Seu corpo fica suspenso com facilidade, tem o mesmo peso de uma nuvem. Na sua cabeça, está longe. Na sua cabeça ele é Bruce Lee.

Aprendeu a se mexer daquele jeito vendo os filmes antigos de kung fu. Nunca fez kung fu. A arte milenar que domina é a do passinho. Se não tivesse conhecido Bruce Lee, talvez fosse diferente.

Com seu mestre, aprendeu a fluir como água: “esvazie sua mente. Seja sem formato. Sem contornos”. Imita alguns gestos do seu ídolo, misturados no meio da dança. Como se lutasse com um inimigo imaginário. Os braços bloqueiam os socos do adversário, suas pernas ágeis golpeiam. Mas S. também apanha! Recebe os golpes invisíveis com tanta graciosidade que vira parte da dança.

Por causa desse estilo peculiar ganhou o apelido de Gafanhoto. Ninguém consegue fazer igual. Não exatamente.

“Água corrente nunca fica estável; você precisa continuar fluindo”.

Uma vez que a corrente de movimentos começa, eles continuam sem muito esforço, sem precisar pensar demais. Quando S. entra nesse estado de flow, não há medo. Não há dúvidas. Não há cansaço. “Seja água, meu amigo”.  

S. sente que poderia passar horas fluindo, emendando movimento atrás de movimento. Ele nem percebe que quase todo mundo já foi embora. Ele se deixa possuir pelo passinho. Ele poderia fluir até cruzar a fronteira, até sair do continente, até chegar na China. Até nunca mais ser visto. Mas ele acorda do transe, recolhe a mochila do chão e corre pra estação de metrô. Não percebe os aplausos do moço que lavava carros, no posto do outro lado da rua.


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