cada pessoa é um universo inteiro

Roupas no chão, uma meia sem par, louça na pia. Mas tudo está bem. Existir é uma ilusão pacífica. M. viu a frase num filme francês e a escreveu no mural do seu quarto. As palavras ficaram também como forma de justificar seus atrasos, o desinteresse pelas notícias políticas, todo caos, a vontade repentina de dançar, às vezes sem roupa. Vergonha virou um conceito muito diminuto depois dessa súbita percepção de que a vida não passa de uma ilusão bem elaborada. M. lembra de ter visto um vídeo que previa, abusando de computação gráfica, os próximos trilhões de trilhões de trilhões de anos da história do Universo. Em algum momento, num futuro distante demais para a compreensão humana mensurar, o Universo será composto de uma profusão de buracos negros dançando no espaço, encontrando-se e mesclando-se em buracos ainda maiores, com pontos de luz quicando e traçando caminhos sem sentido em meio a esse espetáculo matemático sem espectadores. Dessa perspectiva, ela precisou reconhecer, suas ações e sua própria existência tinham o mesmo efeito que um grama de nada; não apenas ela, mas a história de todos que conhecia, assim como a vida de todos os seres que já passaram por este planeta, não passava de um breve espasmo de luz e calor num Universo cuja existência era predominantemente fria, vazia e escura. E os piolhos, meu deus? E os cravos? Imaginava se uma criatura que vivia usando a cabeça humana de planeta poderia conceber a dimensão e a gravidade desse fato. Talvez soubessem melhor que ela; por isso, suas vidas se resumiam a comer sebo cutâneo e, de madrugada, escapulir dos poros para transar feito loucos na superfície da pele. Existir é uma ilusão pacífica. Tudo está bem. M. tocou a si mesma apreciando cada sensação de sua pele, grata por fazer parte dessa bagunça cósmica enquanto ainda existem estrelas acesas, explodindo de calor. Levantou ainda sem calças e foi fazer mais café.
Texto originalmente publicado em setembro de 2019.
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