cada pessoa é um universo inteiro

O que é que pode fazer o homem comum nesse presente instante senão sangrar? Nunca que A. se achou especial. Conhece bem a região, isso sim. Viu tanta coisa com seus olhos fundos, fundos como o coração da gruta. Sabia chegar lá, era bom de contar histórias, bastava para fazer uns trocados disso. Por mais que repetisse o mesmo caminho, sempre descobria algo novo; um pé de seriguela carregado, os passarinhos, um caramujo gigante se arrastando em pedra molhada, o espanto na cara dos turistas. Dormiu naquela caverna tantas vezes que era como voltar para casa. Em algumas noites, sonhou que era feito de pedra. Teve a sensação fresca de ser algo muito antigo. Eu sou pessoa! A palavra pessoa hoje não soa bem, pouco me importa. Era antigo sobretudo porque sabia que fazia parte de uma história muito mais velha que ele, mais velha que sua mão enrugada acendendo um cigarro. Não conheceu o pai. Não sabia de onde vieram os avós. Nordeste é uma ficção, Nordeste nunca houve! Tinha no rosto os vestígios borrados de uma história que envolvia fugas, sangue, tristeza, abandono. Essas não sabia contar. Sua língua aprendeu apenas as histórias que seus olhos viram. Não, eu não sou do lugar dos esquecidos, não sou da nação dos condenados, A. era de um país gigantesco, aquele que ficava na fronteira do seu próprio corpo. Sentava na beira de uma pedra e podia ficar horas sem falar com ninguém; diante da vista, a imensidão da Chapada, a única terra que conheceu, embora olhasse para dentro, para o lugar onde guardava seus pertences mais valiosos. Conheço meu lugar. Como o caramujo, A. carregava sua casa nas costas. Suas memórias, ao menos, ninguém poderia arrancar dele.
Texto originalmente publicado em julho de 2019.
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