Trabalha calado

cada pessoa é um universo inteiro

Com F. não tem conversinha. O mercado um zum zum zum danado, um falando mais alto que o outro, quem tem mais, qual é mais fresco, aqui é melhor, aqui é mais barato, ficou sabendo da última?, fulano me disse, opinião disso, opinião daquilo, todo mundo com alguma opinião sobre algo. Com a faca na mão, F. trabalha calado. Peixe fresco exige atenção, cuidado. Fatia um atum em postas. Limpa e descama um robalo, a pedido da freguesa. Pergunta o básico, responde o necessário. Assim, afiado. Tem fama de poucos amigos. Rabugento, mal-encarado. Corta a cabeça do tambaqui num único golpe, preciso. Seu silêncio não é mau-humor, nada disso. É respeito pelo ofício. Respeito pelo peixe que derrama as vísceras sobre sua tábua. Respeito pela faca que pode lhe arrancar um dedo a qualquer descuido. É um ritual de morte e de vida, afinal. É silêncio para que seus dedos falem, separem a guelra, abram caminho para a faca entrar. É ficar calado para fazer o que precisa ser feito. É foco. É sim de hoje a corvina, senhora.


Texto originalmente publicado em agosto de 2019 na edição #47 da minha newsletter.