Em transe

cada pessoa é um universo inteiro

Desde que entrou em estado de flow, K. ali ficou. Pode ter acontecido quando ela começou mais uma pintura e, ao traçar as linhas da perspectiva, ali se perdeu, num ponto de fuga riscado a lápis, enquanto sua música favorita tocava no celular. What’s going on? Embora fosse difícil explicar como funcionava esse tipo de rasgo entre as dimensões, K. atravessou o limiar entre elas, numa escolha consciente em afundar na arte. Ela sabia que ainda existia e que podia ser vista; seu corpo andava e se mexia, conseguia falar ao telefone e aparecer nos compromissos, levava o cachorro para passear, aparecia sorrindo nas fotos. Na superfície, nada parecia ter mudado; sua fuga da realidade era quase imperceptível a olho nu. Mas K., na verdade, estava nesse flow infinito, onde cada desencontro, cada abacate que comia de manhã, cada ausência, cada pessoa que amava para depois esquecer, cada cocô do seu cachorro que recolhia da calçada, tudo em sua vida seria um monumento à arte, como um modelo que esculpia em argila para depois observar e transformar em telas. Não, K. não tinha fugido da realidade. Estava imensamente mergulhada nela, só que numa frequência diferente.


texto originalmente publicado em outubro de 2019


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