Falta poesia

Acordei para a vontade de reescrever tudo, tudo. Como se colocasse o trem nos trilhos que suei para construir, só para perceber, dentro do trem, que terei que voltar, recolocar os trilhos, porque eles não vão tanto na direção que imaginei, o caminho está errado e eu nem deveria estar num trem, se é água que tenho que atravessar.

Foi culpa de Manoel de Barros, de Adélia Prado.

Culpa da exposição lotada de gente, no Itaú Cultural, tudo para ver umas folhas datilografadas, outras escritas com caligrafia tão pequenininha feita de letras-átomos. Folhas e desenhos de passarinhos e o poeta falando, como pode tão pouco para fazer mágica nas pessoas?

Uso a palavra para compor meus silêncios.

Não gosto das palavras

fatigadas de informar.

Dou mais respeito

às que vivem de barriga no chão

tipo água pedra sapo.

Entendo bem o sotaque das águas

Dou respeito às coisas desimportantes

e aos seres desimportantes.

(…)

Amo os restos

como as boas moscas

Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.

Porque eu não sou da informática:

eu sou da invencionática.

Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Manoel de Barros
“O apanhador de desperdícios”,
de Memórias Inventadas: a Infância (2003)

O poema mudou algo em mim que não entendo e depois Adélia Prado continuou o serviço. Fui buscar no sebo um livro dela, “Solte os cachorros”, que é de poesia sem ser de poesia.

Toda vez que uma pessoa fala uma coisa certa no meio de uma roda de gente que só fala bobagem, fica meio antipática. Jesus não podia ser simpático. Os profetas também, duros de roer. Coisas que eu falo certo são coisinhas miúdas. Queria era profetizar de vez. Com a autoridade da minha palavra de fogo quem ia me chatear? Me suportava calado ou mandava me degolar, o que também é bom e glorioso. Mas já descrentei de glórias. Meu destino é miúdo, é um caquinho de vidro na poeira.

Adélia Prado
Solte os cachorros (1979)

Voltei aos meus escritos e eles não eram mais os mesmos — ou eu já não sou a mesma depois de ver os mágicos em ação e entender que as palavras que eles usam são as mesmas que uso, e que também as posso colocar para acender luzinhas.

Quis reescrever tudo, culpa também do meu pai, que foi na verdade o primeiro poeta que conheci. Quando pequena o via sentar num banquinho e bater nas palavras numa máquina de escrever dura, e as letras ficavam arranjadas no papel quase como um desenho, então tudo bem que eu não entendesse tudo; eu lia o espaço entre as letras. Pegava as revistas Manequim e achava um barato tentar decifrar a mensagem que se formava nos espaços em branco, pequenos caminhos de rato, que as letras pretas revelavam no papel. Nasci equipada com aparelho de ler poesias.

Ler esses poetas agora me lembrou que não é minha primeira visita a esse mundo; eu entendo o suficiente dessa língua para pedir uma água, ou até para traduzir minha história para o idioma da mágica.

Veio a vontade de reescrever não como sentimento de trabalho desperdiçado, mas por entender, finalmente, que o que falta nesse texto já está aqui.


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