À velocidade da máquina

Tenho nos pés um osso a mais, como o vestígio de uma garra de velociraptor que não cresceu. Nenhum ortopedista jamais conseguiu explicar. Mas uma vida na companhia desse osso extra me fez entender: é o medo de ficar para trás, calcificado.

Tenho pressa antes de conseguir explicar o porquê. Com 3 anos, foi a primeira vez que correr me machucou. Soltei da mão adulta e quis correr para o gramado perto do prédio onde eu morava. Não vi o arame do canteiro de flores, corri direto com o pescoço nele, voei para trás. Mas calma, eu não devia estar nem a 2km/hora.

Fiquei com um travessão vermelho atravessado na garganta.

Incrível como crianças pequenas agem como pequenas suicidas. Não porque queiram se matar, mas porque não entendem o que é a morte. Temos então que impedir que caiam, que quase se afoguem, que enfiem o dedo na tomada, que tentem beber desinfetante. Pelo menos até que possam entender o que é perigo. Pelo menos até que possam aprender a ter medo.

Aí ficamos adultas e às vezes perdemos a mão na dosagem do medo. Medo de coisas que nem matam, mas nos fazem morrer de medo. Medo de ficar para trás, medo de estar atrasada. Às vezes, medo de sair do lugar, de seguir em frente.

Veja aí se você também tem um osso extra no pé.

Sempre quis ser o ponteiro grande do relógio, o que se move mais depressa. Adiantada, feito horário de verão (saudades, horário de verão).

Acordar antes do despertador, chegar antes da hora, ser a primeira da fila, antecipar o futuro, vivendo o que não aconteceu mil vezes dentro da cabeça antes que aconteça. E, ainda assim, chegar atrasada.

Como se eu estivesse presa numa câmera lenta pastosa enquanto tudo ao redor acontece rápido demais. Assuntos que se esfarelam em milésimos de segundos, o ciclo da raiva e do esquecimento ficando mais curto, novidades que envelhecem em poucas horas, fenômenos relâmpagos que desaparecem com a mesma rapidez com que alcançaram o topo.

A máquina acelera a velocidade. Produzir mais, consumir mais, fazer um sucesso maior, ainda mais depressa. Difícil competir com esse ritmo, porque a máquina não se cansa. É uma máquina de produzir coelhos da Alice, multidões de coelhos atrasados, que precisam correr, que precisam chegar logo.

A máquina precisa que cada um de nós se esqueça que demorar faz parte, porque nossa pressa e ansiedade lhe servem de combustível. 

Quantos livros você leu esse ano? Deveria ter sido mais, e a máquina te mostra alguém que conseguiu. Quais metas já atingiu? Não é o suficiente, diz a máquina, mostrando quem tenha atingido o triplo. Com quantos anos alcançou seu primeiro milhão? Está perdendo tempo, e a máquina finge que você não existe até que você chegue lá.

Balzac escreveu 85 livros em vinte anos. Teria se sentido frustrado por não ter escrito 100?

Freud levou oito anos para vender a primeira tiragem de 6 mil exemplares de A interpretação dos sonhos, que ele considerava uma de suas maiores obras. Teria se sentido atrasado por não ter vendido tudo no primeiro ano?

O osso extra no pé me permite distribuir o peso de outra forma, para dar passos mais largos, mais rápidos, passos de velociraptor. Mas de nada adianta apostar corrida com o tempo. A extinção também pegou os dinossauros mais velozes.

Mesmo assim, corro. Nem que seja pelo medo de ficar parada e afundar na areia movediça. Corro, mesmo sabendo que os arames invisíveis continuam lá.