Aquela fé

Escritora também precisa ter fé, eu disse esses dias para a Olivia.

Porque não há garantias que seremos lidas, que o que escrevemos vai chegar na mão das pessoas (passando por obstáculos desde algoritmos que nos limitam o alcance até a taxação de livros que o governo propôs para asfixiar de vez a transmissão de conhecimento e cultura, esse grande entrave para os planos de um Brasil bem macho bruto de arma na mão), nenhuma garantia de que, sendo lidas, receberemos qualquer retorno que efetive que nossa escrita teve qualquer papel no mundo (desde comentários de leitores interessados nas conversas e histórias que temos a oferecer, até retorno financeiro justo, digno). Não há garantias, por isso é preciso ter fé para continuar a escrever.

Não uma fé religiosa, como se qualquer religião pudesse ter monopólio sobre a fé. Pode ter fé em um Deus, se quiser. Mas o objeto dessa fé pode variar. Fé em si mesma. Fé no trabalho que se faz. Fé nas pessoas. Fé nas pequenas utopias que precisamos construir em meio à destruição. É isso ou se despedaçar por dentro, virar zumbi.

Não falo de fé como jogar pra Deus e esperar que as coisas aconteçam magicamente. Falo de fé como se mover por uma aposta no que não pode ser garantido. A fé exige um investimento, um trabalho que acontece na direção do desejado. Que pode não acontecer. Mas agimos para que, em algum nível, aconteça.

Falo daquela fé de que fala Don L. A fé que está no motivo do motivo.

Ouço Sidarta Ribeiro falar sobre como, no tempo que passou nos Estados Unidos pesquisando, só pensava em voltar para o Brasil, nos planos de criar um instituto aqui. Fazer ciência no Brasil é um ato de fé. Muito antes de lunáticos terraplanistas, negacionistas e fanáticos fundamentalistas chegarem ao poder, cientista brasileiro já tinha que se virar nos 30 com os recursos minguados que tinham. Agora então.

Trabalhar com educação no Brasil é um ato de fé. Fazer cultura no Brasil também é um ato de fé. Só fé explica continuar a tocar violino num navio que afunda, sem garantias de que sobreviveremos ao naufrágio.

Fé de que ainda haverá alguém para ler.

Sonhei com um lembrete de que as coisas sempre podem ser piores do que a gente espera ou planeja. Sonhei que eu precisava refazer tudo, que um trabalho que me ocupou por anos foi em vão, esforço jogado no ralo. Eu começava a tirar caixas vazias da geladeira, vendo o que eu poderia fazer com pouco, ou com nada. Dá para fazer muita coisa com nada. Então tiro todas as embalagens vazias e descubro, no fundo da geladeira, uma cartela de ovos. Umas duas dúzias. Muitos ovos.

Na mesma entrevista, Sidarta, neurocientista, falou dos sonhos como oráculos. Aqueles ovos são, na verdade, mensageiros. São uma promessa de vida, afinal. Uma aposta, que pode ou não vingar. Símbolo da vida. Minha fertilidade criativa. Abundância. Ou, talvez, um recado de que, mesmo quando as coisas estiverem muito ruins, ainda dá para fazer um omelete.