Terminar é a lembrança da morte

Tem algo acabando todos os dias. Mas são os fins mais dramáticos, as grandes rupturas, que acabam chamando nossa atenção. Como o ano, essa força geológica monstruosa que acaba por si só, sem precisar do esforço especial de quem quer que seja para encontrar o seu fim; ele acaba e só nos resta assistir enquanto os minutos escorrem e os fogos explodem no céu. Não, ninguém acaba com o ano, é o ano que acaba com a gente, e assim podemos cantar com força os famosos versos de Belchior “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”, embora ninguém esteja em condições de fazer uma promessa dessa magnitude.

Imagine se dependesse da boa vontade de alguém para que o ano acabasse. Não acabava. Existe uma certa relutância em terminar coisas. Terminar é antinatural, vai contra o nosso ímpeto de dar continuidade, de tornar algo parte da rotina, de fazer “crescer e multiplicar”, como Deus teria dito, talvez não prevendo que fôssemos pesar demais a mão nesses dois verbos. Então não, saber lidar com términos não é muito a nossa praia. Terminar é a lembrança da morte.

Terminei algumas coisas esse ano. Relações, projetos, ideias sobre mim mesma. Teve muito contragosto envolvido no processo: por exemplo, meu segundo romance e a terapia foram duas coisas que eu não queria terminar, mas, por razões diferentes, tive que. Foi sofrido, mas no final, deixei ir.

Quando termino algo, experimento uma pequena morte, por isso inevitável que o sofrimento seja o ponto comum entre todos esses processos. Todo um luto envolvido. Parece até que a sofrência me atrai: insisto em concluir, em terminar, em fechar ciclos, mesmo sabendo o que me espera depois da linha de chegada. Nessa última reta final, o luto me pegou de jeito, me derrubou, marcou ippon. De novo me vi na posição ridícula de meu corpo ter que me dizer a hora de parar: o ano acabou, fia, para de querer inventar mais moda.

Foi com o cansaço sentado em cima de mim que fui forçada a olhar para ele, a aceitar que ele existe, que é real, que ele é meu. Como alguém que há tempos não ganha décimo terceiro nem tem direito a férias remuneradas e que descende de uma longa linhagem de trabalhadores, sempre acreditei que não tenho o direito de me cansar. Recusava o cansaço com medo de que ele me tornasse fraca. Mas a cada dia entendo que medo de parecer isso ou aquilo é coisa de jovem; que eu seja fraca, e daí?

Da lista de coisas que eu poderia me gabar de ter conquistado esse ano, prefiro marcar apenas esta: aos trinta e três anos de vida conquistei o direito ao cansaço.

Estou cansada de trabalhar, cansada da internet, cansada das superficialidades, dos parasitas e alpinistas, dos milicianos que sequestraram o futuro desse país, cansada de como falam alto as pessoas com menos propostas, com as ideias mais pobres. “Estou muito cansado do peso da minha cabeça”, para citar mais uma do Belchior e ficar com a sensação de que ele já cantou a maioria dos meus sentimentos.

Assim como terminar coisas, o cansaço também é a lembrança da morte. Foi abraçada a esse cansaço que me lembrei que vou morrer. Ou melhor, já estou morta. Estamos morrendo aos poucos, não estamos? É afinal sobre isso que se trata o final de ano, quando nos vestimos de branco para comparecermos juntos ao nosso funeral preliminar (as vestes pretas estão reservadas para o funeral derradeiro). O tempo vai nos carregar a todos. É por isso que o ano precisa acabar independentemente dos nossos esforços; como seres moribundos, não teríamos energia para encerrar algo dessa dimensão.

Então o ano tem a decência de terminar por conta própria, para que a gente se concentre em continuar e terminar outras coisas, aquelas que nos fazem viver. O ciclo termina e podemos descansar, sabendo que até o cansaço, por mais esmagador que seja, também vai ter hora para acabar.

arte: Richard Lewer


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Texto originalmente publicado em dezembro de 2019, na minha newsletter Uma Palavra. Clique e assine grátis para receber as próximas edições.