Lembro dos dias menos reais

Esses dias passou por mim um post dizendo que não ficam lembranças do que fazemos diante de uma tela. A vida está lá fora, etc. Posso concordar que estar offline é importante. Sair da internet, caminhar, sentir o sol, conversar cara a cara, ouvir conversa de gente desconhecida nas ruas, dizer vamos marcar e marcar mesmo, rabiscar em papel, se expor a experiências aleatórias que um algoritmo não é capaz de oferecer. 

Mas a esta altura de sociedade cronicamente online na qual estamos imersos, em que tanto das nossas vidas, do nosso trabalho, do nosso consumo e das nossas relações se passa justamente na frente de uma tela, me espanta como o digital continue a ser tratado como se fosse menos real.

Se evaporassem as memórias de experiências que tive na internet, sumiriam a preocupação e o carinho que tenho por pessoas que jamais encontrei na vida real. No entanto esse afeto continua aqui, teimando em parecer real, acredita?

Sumiriam as lembranças de conversas mediadas por telas que tantas vezes foram uma extensão da minha relação com amigos de carne e osso. Sumiriam as memórias das datas importantes desde que passei a viver como expatriada, nas quais só pude estar com a família por chamadas de vídeo.

Sumiriam pelo menos 3 anos inteiros de memórias, do tempo em que estudei, trabalhei, me encontrei com os amigos, cantei parabéns fora de tom, troquei figurinhas bêbada, acompanhei como as pessoas queridas estava sobrevivendo, tudo por meio de uma tela, à distância, em aplicativos de mensagens, em redes sociais, em salas virtuais onde sempre alguém esquece de ativar o microfone antes de falar. 

Esqueceria dos conhecimentos inúteis com os quais esbarrei em artigos aleatórios na Wikipedia e que acabei usando em alguma história, dos truques que aprendi em tutoriais de Youtube, dos insights que tive em aulas onde os professores estavam em um fuso horário diferente do meu. Esqueceria de tudo o que criei só porque tenho acesso à internet.

Sumiriam as lembranças dos desencontros, das inimizades que muito me orgulho de ter cultivado, das trocas de emails ferozes, das vergonhas que passei, dos ranços que criei de pessoas que nunca vi na vida, do luto que atravessei com a morte de pessoas que só vi por meio de uma tela. Sumiriam terabytes de memórias de tretas onde o feed virou um campo de batalha pelos motivos mais banais, como um pote de sorvete ou a cor de um vestido. O que pensando bem, seria ótimo. Mas infelizmente não deletei da minha cabeça as lembranças do que fiz e presenciei no falecido Twitter no dia em que excluí minha conta de lá.

Lembro de mais coisas do que eu gostaria. Talvez as memórias evaporassem se eu passasse por tudo isso mera espectadora, um camarão sonolento sendo levado pela onda dos feeds. Rolando, apenas. O problema é que nesse palco tenho papel ativo. Pior é que sei mesmo usar toda essa parafernália para criar conexões. 

Se me envolvo, não esqueço. As memórias que criei online não são como as páginas que podem sair do ar a qualquer momento e exibir um 404 no lugar. Isso porque (dizem) o ambiente digital é de mentirinha. Imagina, que loucura, se ele fosse real!


Cenas do filme “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”


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