Leitura voraz

Parece que existe uma tendência a pessoas, à medida que envelhecem, preferirem não-ficção a ficção. Não sei o quanto isso é verdade, mas sei que hoje continuo tão fã de ficção quanto já fui quando mais jovem. E não apenas isso, como também tenho lido ficção para adolescentes. E gostado muito.

Sou do tipo que acha On The Road um saco, mas que fica sem fôlego com Jogos Vorazes.

Quando Jogos Vorazes estreou nos cinemas, prometia ser o “novo Harry Potter” em termos de sucesso adolescente. Isso foi o suficiente para me deixar com o pé atrás: já imaginei uma história bobinha, estilo Crepúsculo, com personagens jovens e belos, romances açucarados e muito efeito especial para pouca história. O que aconteceu foi: eu realmente achei o filme bobo.

Mas nunca se deve julgar um livro pelo filme. Fui convencida por uma adolescente (sim, isso mesmo) a ler a trilogia escrita por Suzanne Collins e me surpreendi. Primeiro, pelo fato de um livro tão violento e extremamente político ser considerado literatura para adolescentes. É óbvio que o filme não mostra nem metade dessa violência toda. Do livro, escorre sangue.

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Vamos lá: a história trata de um futuro distópico em que Panem, o país antes conhecido como América do Norte, é dividido por doze distritos comandados por uma Capital tirânica. Cada distrito produz um tipo de recurso: por exemplo, o Distrito 1 produz artigos de luxo, o 4 é da pesca e o 11 é da agricultura. Os distritos, que antes eram 13, já se rebelaram contra a Capital, no período histórico conhecido como Dias Escuros; mas a Capital os subjugou e destruiu o 13º distrito.

Para lembrar o país do insucesso da rebelião e do poder da Capital, foram criados os Jogos Vorazes. Uma espécie de reality show em que são escolhidos um garoto e uma garota (de 12 a 18 anos) de cada distrito para serem jogados em uma arena e lutarem entre si até a morte.

No meio disso tudo está Katniss, protagonista e narradora da história. É pelos olhos da garota que entramos no cenário cruel da arena dos Jogos; mas, antes disso, é através dela que conhecemos as condições precárias de sua vida no distrito 12.

Há coisas mais difíceis para um jovem enfrentar do que um conflito amoroso.

Collins conseguiu criar não apenas um universo rico e assustador, mas também uma trama sobre adolescentes que não gira em torno de um romance. O romance está lá, sem dúvidas; mas de uma forma bem diferente. Katniss não é a mocinha que idealiza e busca um amor romântico. Rola um clima entre ela e Gale, seu melhor amigo no Distrito 12, mas ela não leva isso muito a sério. Já seu envolvimento com Peeta, seu colega de arena, é pura encenação. O filme não deixa isso muito claro, mas Katniss não ama Peeta, e sente atração não por ele, mas pela sobrevivência – afinal, seu romance com o garoto favorece os dois diante do público e dos patrocinadores dos Jogos Vorazes.

Embora esse conflito Peeta vs. Gale esteja presente durante toda a série (não entendo qual é o problema da protagonista ficar com os dois), Katniss tem outras preocupações. Como, por exemplo, não morrer de fome, de sede, trucidada por algum animal, ser assassinada, ter sua família morta ou ainda ajudar a liderar uma revolução.

Gosto da forma como Collins concentra a narrativa na sobrevivência. É impossível não empatizar com Katniss e sentir a mesma angústia de não conseguir encontrar água na arena, ou de ter que caçar para sustentar a irmã e a mãe no Distrito 12. Mesmo as estratégias para ela se dar bem nos Jogos, como a escolha do seu figurino e sua atuação nas entrevistas, tratam-se disso: sobrevivência. E Katniss dá um duro danado para sobreviver a tudo que acontece na história. Durante os três livros, perdi a conta de quantas vezes ela foi seriamente ferida, passou fome, frio, sede, ou quantas vezes ela passou perto da morte. As coisas não são nada fáceis para Katniss; tanto que, mesmo sabendo que ela é a narradora e ainda resta livro pela frente, cheguei a acreditar que ela fosse morrer em vários momentos. É maravilhoso quando o autor cria situações inusitadas não para salvar seu protagonista, mas para colocá-lo em apuros.

O livro tem lá seus defeitos. Achei que Collins terminou o segundo e o último livro com muita pressa. A narrativa segue num ritmo interessante e de repente acontece algo, as coisas ficam confusas, e quando você vê, o livro acabou. Também não fiquei muito satisfeita com o final da saga; ficou Harry Potter demais para o meu gosto. Isso e a falta de sexo (apesar de existir muita tensão sexual na história) foram as únicas coisas que fizeram eu me lembrar que estava lendo um livro para adolescentes.

De resto, o livro é tenso, cheio de cliffhangers que me deixaram grudada ao livro, querendo saber logo a continuidade dos acontecimentos, um desfile de personagens interessantes e muita maturidade ao colocar temas espinhosos como violência, política e mídia no centro da história.

Aos moldes da nossa própria mídia, o sofrimento e a matança são transformadas em entretenimento.

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A política do “pão e circo” que leva tantos jovens à morte para deleite do público é uma forte ferramenta de opressão. Ao colocar na arena adolescentes dos doze distritos e estabelecer que só um pode sair vivo, a Capital está, na verdade, garantindo que os distritos vejam uns aos outros como oponentes, jamais aliados. Essa é a função do entretenimento não só em Panem, mas em nosso próprio mundo: manter as coisas como estão. Preservar o status quo. Não deixar que os oprimidos comecem uma revolução.

Mas Katniss desafia o poder da Capital para todo mundo ver, em plenos Jogos, transmitidos pela televisão. É tão emblemático ter uma heroína que se volte para esse sistema opressor e diga que “não, vocês não podem me controlar”, que considero essa cena, no final do primeiro livro, uma das mais emocionantes e a mais importante de toda a série.

É assim que Katniss, de tributo participante dos Jogos Vorazes no primeiro livro, faz sua transição para o movimento rebelde, no segundo livro. No último, ela se transforma no próprio símbolo da revolução, o Tordo, e vai à guerra. Por mais que muita gente torça o nariz, Katniss é uma heroína bem longe de ser passiva: ela toma decisões e ajuda a mudar o destino da história. Fico aliviada de ter uma personagem como ela como referência para os jovens, em contraposição a outros padrões tão nocivos e tão naturalizados pela mídia que são impostos a nós desde muito cedo.

É lindo ver esse tipo de mensagem em um livro para adolescentes: torço para que eles (especialmente as garotas) entendam que, assim como Katniss, podem também começar uma revolução.

Para quem ainda não leu: bem, é sabido que não dá para agradar todo mundo. Tem gente que acha que Katniss é uma heroína fraca, tão passiva quanto uma Cinderela. Tem gente querendo jogar um balde de água fria em quem esperava finalmente ver uma história protagonizada por uma heroína fodona, como quem diz “lamento, não foi dessa vez! Fica para a próxima, garotas!” E sobre isso eu escrevi neste post. Não deixem de ler.