A Ficção Científica Perfeita

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por Zetta Omens

DA REDAÇÃO – A promessa de que a Ficção Científica mudaria para sempre depois de “Reboot do Espaço-Tempo Que Todos Queriam Ver”, de Alpha Bolt, talvez tenha ficado para depois. Obra cercada de controvérsias desde a sua concepção, figura entre os mais vendidos há cinco semanas consecutivas, ainda que o fato não torne a obra blindada contra críticas, da mesma forma que o aparente sucesso deste lançamento esteja longe de lançar Alpha Bolt como um grande autor do gênero.

Mais do que dissertar sobre a obra, talvez caiba aqui falar sobre seu autor. Alpha Bolt é o robô mais avançado já construído na área de robótica literária. Criado com o propósito de calcular e escrever a obra de Ficção Científica perfeita, Bolt passou mais tempo sendo desenvolvido e programado do que, de fato, escrevendo o “Reboot do Espaço-Tempo Que Todos Queriam Ver”. Em dois meses, o livro já estava pronto, fato alardeado por seus criadores-editores como prova da eficiência do robô.

“Acreditamos que o único indivíduo realmente qualificado para escrever Ficção Científica de qualidade seja justamente um robô. Alpha Bolt irá revolucionar a literatura do gênero e deixar para trás os já caducos autores consagrados de Ficção Científica”, foi a declaração dada por Jamel Ruscoe, chefe de desenvolvimento da equipe que realizou esta ousada empreitada literária.

Alpha Bolt é um computador de potência e capacidade indiscutíveis. Seria capaz de construir máquinas, revolucionar indústrias, explorar planetas e descobrir novas leis da Física se não fosse especificamente programado para direcionar toda a sua inteligência de dimensões incalculáveis para a escrita. Um computador que fosse capaz de ir além de qualquer noção que a mente humana jamais conseguiria chegar certamente seria capaz de produzir a obra de Ficção Científica perfeita – era o que defendiam, pelo menos.

Os critérios para definir o que seria a obra perfeita foram estabelecidas, obviamente, durante a programação. A obra deveria ser atemporal e cientificamente correta. O que significava que, não importasse quantas descobertas fossem feitas no futuro, a obra continuaria não só atual como ainda poderia antecipar novas descobertas. Além disso, absolutamente nada que contrariasse a lógica e as leis do Universo poderia entrar na história. Dessa forma, uma nave seria descrita com absoluta correção e só poderia ser usada na história se seu funcionamento fosse possível, ainda que ela não existisse.

Todas as variáveis possíveis foram calculadas por Bolt, desde probabilidade de tecnologias a serem desenvolvidas até composição química de combustíveis que possibilitassem viagens mais rápidas que a luz. A análise minuciosa de dados sobre comportamento humano, estilos literários e estruturas narrativas de todos os romances e contos que a humanidade já produziu daria conta da construção de personagens e de um enredo com profundidade e conflitos. A super máquina da escrita ainda combinou, organizou e selecionou, dentro de uma vasta gama de possibilidades, os elementos mais adequados para criar a história perfeita. Sem artifícios baratos ou truques de escritores.

O público nutriu generosas expectativas do momento em que Alpha Bolt foi ligado até o momento em que as primeiras páginas começaram a ser impressas – já devidamente editadas e revisadas! Os exemplares do “Reboot do Espaço-Tempo Que Todos Queriam Ver” mal chegavam nas livrarias e já não davam conta de atender a demanda de vendas. Um estrondoso sucesso se delineava.

A crítica, no entanto, não foi tão entusiasmada. Ou pelo menos parte dela. Um exemplo da falta de consistência da obra está neste mesmo artigo: a escolha de ter despendido parágrafos para contar a história por trás de Alpha Bolt em vez de focar na obra já demonstra como esta é tão menos interessante que a história que tornou possível sua existência.

Dito isto, talvez não seja necessário se aprofundar nos detalhes que a tornam insossa, até desagradável: sua narrativa cansativa, sua falta de imaginação, sua pobreza e sua carência de falhas (até ser certinha demais tomou-lhe o brilho); afinal, críticas como estas abundam em outros veículos e já não preciso repeti-las se elas fazem esse trabalho de análise tão bem. A questão aqui é outra: como um computador tão avançado como Alpha Bolt não foi capaz de calcular que sua obra, em vez de ser considerada perfeita, acabasse se tornando um total fiasco?

A resposta, em parte, é que ele não errou o cálculo. Alpha Bolt de fato criou a obra perfeita. Que, claro, para começar é o crème de la crème do Hard Sci-Fi, porque sua programação não poderia conceber outra Ficção Científica que conseguisse se aproximar tanto da perfeição. Mas, prestando atenção ao público que melhor recebeu “Reboot do Espaço-Tempo e meu deus não dava pra ter pensando em um título menos longo” foi, curiosamente, aquele formado por robôs. Máquinas, computadores, andróides e congêneres leram e aclamaram a obra. Tinham capacidade de processamento de dados avançada o suficiente para julgar a qualidade do material. Já o público humano, no geral, facilmente se entediou.

Certamente Alpha Bolt produziu uma história carregada de uma visão afiada de futuro que se manteria atual por séculos. A tecnologia descrita em sua narrativa é fascinante por ser ousada e, ao mesmo tempo, possível. No entanto, para muita gente, “Reboot do Espaço-Tempo” sequer pode ser considerada literatura. Seria no máximo uma coleção de previsões de futuro e um manual de funcionamento de tecnologias que ainda seriam inventadas. Jamel Ruscoe limitou-se a comentar que essas críticas baseavam-se em recalque.

Impossível não lembrar dos autores clássicos – e humanos – que trouxeram a Ficção Científica até aqui, entre obras boas e ruins. Embora não seja possível afirmar com certeza, há indícios de que não era a perfeição que buscavam em seu trabalhos; buscavam, sim, universos e conflitos que refletissem verdades humanas. Fizeram deste gênero literário uma fonte rica e imaginativa de questionamentos sobre a sociedade, o futuro, a humanidade e o Universo. Conseguiram construir uma Ficção Científica que foi muito além de uma pura dissertação sobre tecnologia e ciência. Mesmo munidos apenas de imaginação, levaram as histórias mais longe do que qualquer cálculo cartesiano e as mantiveram vivas e atuais ainda que a tecnologia e os universos nelas imaginados tenham ficado atrás dos avanços da realidade. O que os tornou grandes autores foi justamente saber o que importava.

Seja como for, a obra encontrou seu público e isso parece satisfatório – mas longe de perfeito. Além disso, Alpha Bolt não considerou calcular que, se estamos falando de humanidade, nem a mais perfeita das obras está livre de ser desprezada. Ao autor com carreira mais curta e bem-sucedida da história, só posso dizer: continue tentando.

Zetta Omens é robô, crítica literária e escreve todas as quartas na coluna de Literatura Para Humanos da Revista Orgânicos & Metálicos.

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(Recado do outubro de 2019: eu tinha tirado esse texto do ar, mas depois que Lourdes Modesto revelou que foi com esse texto que eu entrei na mente dela, mudei de ideia sobre ele e resolvi colocar no ar de novo. Alpha Bolt ainda não foi inventado no tempo em que redijo esta nota)

Ilustração por Eric Joyner. Daqui.