Moby Dick e a crueldade

Não caí de amores por Moby Dick. Não terminei a leitura apaixonada, achando tudo genial e excelente, se tão mais preocupada em subir à superfície e pegar um longo fôlego. Uma baleia dentro do meu Kobo, foi o que senti, se tão pesada e lenta foi a leitura. Mas enfim: ar.

Exausta e cheia de dúvidas, foi como terminei a leitura dos cento e trinta e seis capítulos, bem diferente da certeza de tantas pessoas leitoras de que estavam diante de um livro extraordinário, que exaltavam a jornada de Pequod, o navio baleeiro. Engraçado isso de ter certezas tão rápido; porque eu não tenho certeza nem de que não gostei.
 
Os marujos que esperam algum veredicto da minha análise a seguir, podem desembarcar agora. Não vou aqui dizer que o livro é ruim. Tampouco preciso dizer que o livro é mara para admitir que é boa literatura. Tão apressadas somos em dividir as coisas que lemos entre bom e ruim ou gostei e não gostei, que podemos estar deixando passar coisas importantes.

É apenas com o objetivo de organizar meus pensamentos e sentimentos sobre Moby Dick que escrevo sobre as coisas que mais me incomodaram e inquietaram durante a leitura.

A primeira delas foi a incapacidade de embarcar no Pequod e ser cúmplice da matança de baleias; fui incapaz de vê-los como heróis, ainda que não fosse objetivo do autor nos fazer torcer por eles, especialmente pelo desajustado capitão Ahab. A história contada do ponto de vista dos baleeiros me causou certa repulsa.

Moby Dick foi lançado em 1851. O livro pode ser considerado um registro histórico da atividade baleeira na época, pois Herman Melville, o autor, realmente trabalhou como marinheiro em navios de caça à baleia. Ele descreve as atividades com minúcia, o papel de cada homem naquele trabalho, os detalhes, tudo com um notável conhecimento de causa.

A época a qual pertence a história não pode ser perdida de vista. Naquele tempo, a atividade baleeira tinha grande importância na economia: o óleo da baleia era comercializado e usado como combustível para iluminação de casas e ruas, se ainda não havia eletricidade. O espermacete extraído das cachalotes era usado na indústria cosmética e as barbatanas “fornecem às senhoras seus espartilhos e outras invenções elegantes da moda”.

Um mercado bastante lucrativo movido por uma exploração cruel e desenfreada – é possível até traçar um paralelo com a atual exploração de petróleo. Se hoje nos parece absurda a ideia de caçar baleias até quase extingui-las do planeta, será que no futuro veremos como foi equivocada a ideia de basear nossa sociedade na extração de um combustível fóssil que, além de finito, é extremamente poluente?

Claro que a lucratividade desse mercado, que fazia homens passarem tão longos períodos no mar, também os fazia ficar insensíveis em relação à crueldade com aqueles animais. Algo muito sutil na narrativa de Melville expõe essa condição e ajudou a provocar ainda mais minha raiva em relação à matança das cachalotes:

“Agora que os botes a circundavam mais de perto, ela mostrava a parte superior do corpo, em geral mantida submersa. Como as estranhas excrescências que surgem dos nós dos mais nobres carvalhos, quando derrubados, das órbitas que seus olhos haviam ocupado agora surgiam bulbos cegos cuja vista produzia terrível compaixão. Mas ali a piedade não existia. Apesar de sua idade avançada e de seus olhos cegos, a baleia devia morrer, ser assassinada para iluminar os alegres casamentos e outras ocasiões festivas dos homens, e também iluminar as solenes igrejas que pregam a bondade incondicional para com todos os seres.” (capítulo 81)

Moby DickImagem via whalingmuseum.org

Era com muita dificuldade que eu atravessava as cenas mostrando baleias sendo arpoadas, às vezes “cachalotes jovens, cheias de nobres aspirações, prematuramente aniquiladas no período mais florido de suas vidas”, ou sendo esquartejadas, tendo suas cabeças separadas do corpo, ou arrastadas ao lado do barco enquanto eram devoradas por tubarões. Tanto sangue e gordura e sofrimento.

Há um capítulo que trata da “baleia como quitute” e do consumo de sua carne, mais apreciado pelos marinheiros do que pelos que vivem em terra firme e “parecem considerá-lo um alimento repulsivo”. Nele, o narrador faz a comparação com a carne de boi em um trecho particularmente provocativo:

“Sem dúvida, o primeiro homem que matou um boi foi considerado um assassino. Talvez tenha até sido enforcado. E se tivesse sido julgado por um tribunal de bois, certamente seria condenado e receberia a pena reservada a qualquer assassino. Mas ide ao mercado de carne em um sábado à noite e vede a multidão de bípedes vivos contemplando as longas filas de quadrúpedes mortos. Essa visão não vos lembra os canibais? Canibais? E quem não é canibal? Assevero-vos que o julgamento final será mais leve para um fijiano que salgou um missionário em seu porão para não morrer de fome que para vós, gastrônomos civilizados e iluminados que prendeis gansos ao solo e depois vos banqueteais com seus fígados inchados transformados em patê de foie gras.” (capítulo 65)

Que o consumo de foie gras também advém de uma prática cruel, disso não há dúvidas. Mas como ser uma pessoa que ainda come carne e não ficar incomodada com esse trecho? É incômodo lembrar que os processos industriais de onde vem a carne bovina, hoje em dia, não são mais amigáveis. Há aí uma crítica, uma provocação, que conseguiu atravessar os séculos sem perder sequer uma gota de sentido.

Alberto I, Príncipe do Mónaco, observa a desmancha de uma baleia-piloto ao largo do Pico, Açores

 Fotografia: US National Oceanic and Atmospheric Administration

A crueldade contra as baleias prossegue ao decorrer do livro também em forma de ódio, representado especialmente pela figura do capitão Ahab. O homem teve sua perna arrancada em um confronto com a “temível” baleia branca conhecida globalmente por inúmeros barcos pesqueiros como Moby Dick. Desde então, ele se empenha numa louca e furiosa caçada a esta baleia que odeia tão profundamente. Vingança contra uma baleia. Veja se não soa absurdo.

Não são poucas as menções a Moby Dick ou às baleias no geral como monstros, leviatãs e outros nomes pouco simpáticos. Chegou a me irritar. Demonizar esse animal funcionou muito bem para mantê-la como alvo; todas as lendas que a pintavam como animal terrível e perigoso acabavam por justificar sua caçada.

Tememos aquilo que não conhecemos. Acaba sendo mais fácil odiar algo (ou alguém) do qual somos ignorantes. É claro que os baleeiros conheciam muito bem a baleia, por fora e por dentro, já que a rasgavam e fazia parte de seu trabalho separar as partes valiosas. Há extensos capítulos que funcionam como artigos para falar da cauda da baleia, da sua cabeça, do esqueleto e até do jorro: “conheço uma pessoa que entrou em contato com o jorro (não se se por motivos científicos) e teve arrancada a pele do rosto e braço. Os baleeiros consideram venenoso o jorro da baleia e tentam evitá-lo a todo custo.” (capítulo 85) Imagine, uma baleia peçonhenta!

Claro que muitos desses “conhecimentos” eram equivocados e rodeados de mistiscismo e medo, bem pouco científicos. Isso fica claro no interessante capítulo “Cetologia”, onde o narrador faz uma tentativa de classificar as baleias e chega a apresentar a tese de Lineu de que baleias seriam mamíferos; mas logo em seguida ele se recusa a seguir essa classificação: “Saibam que desprezo esse argumento e adoto a antiga tese de que a baleia é um peixe, contando com o apoio do sagrado Jonas para isso.” (capítulo 32)

Mas o que importavam esses detalhes científicos se para os baleeiros o animal não passava de um objeto, algo que seria de posse daquele que pegasse primeiro? Há até um trecho pavoroso em que a questão da posse da baleia é exemplificada através de uma mulher: “Erskine prossegui dizendo que apesar de o cavalheiro ter originalmente arpoado e prendido a dama, ele a abandonara pelo grande problema de vê-la cair na depravação, de modo que ela se tornara um peixe livre. Portanto, quando outro cavalheiro a arpoara, a dama se tornara propriedade desse outro cavalheiro, juntamente com qualquer arpão que nela se encontrasse fixado.” (capítulo 89) Nojo define.

Só há alguma centelha de consciência quando Starbuck, o primeiro imediato do navio, às vezes surge para dizer “basta, pra quê isso, pô?” quando um dos arpoadores resolve cutucar uma baleia já ferida só pra ver de qual é; ou quando tenta colocar algum juízo na cabeça de Ahab ao dizer que ele está pirado e tem que parar de perseguir uma baleia como se fosse um bandido. É só uma baleia, acorda! Não acho que essa voz tenha surgido no romance por acaso.

De fato, há uma vingança que se concretiza no livro. Não a do capitão Ahab, mas a minha. Depois de tantas narrativas extenuantes de baleias sendo feridas e mortas – e há cenas em que eles arpoam baleias que não vão conseguir subir ao navio, apenas para deixá-las incapacitadas à própria sorte, para morrer em outro navio ou na boca de tubarões – foi com certo prazer que vi surgir Moby Dick para acabar com o Pequod.

Muito se fala do capitão que tem uma obsessão e fracassa em sua busca. Mas o desfecho não pertence a ele, e sim à baleia. Fica claro que a baleia não é o monstro violento que pintaram; ela não busca a luta, não quer matar ou destruir. Nos três dias de caçada, é possível ver apenas uma baleia que está numa boa e, mesmo quando atacada, quer apenas seguir o seu caminho – no que acaba arrastando os barcos e matando vários marinheiros.

Ela investe contra o navio, quebra o casco, destroça um pequeno barco entre seus dentes – mas podem julgá-la um monstro por isso? Os verdadeiros monstros estiveram o tempo todo dentro do navio.

E de novo surgiu o incômodo: da mesma forma que Ahab passou a odiar a baleia, eu tinha atravessado o mesmo sentimento em relação àqueles homens, a ponto de ter vibrado internamente quando o navio foi estraçalhado matando toda a tripulação (apenas um marinheiro sobrevive para contar a história). Eu me vi satisfeita com o desfecho de uma história ainda que baseada em um naufrágio que realmente aconteceu. E agora, quem Melville havia transformado em monstro?

Há uma outra questão que muito incomodou e tem a ver com racismo.

De volta ao contexto da época: em 1851, ainda havia escravidão nos Estados Unidos e um grande conflito a respeito disso. Um ano antes do lançamento de Moby Dick havia sido instituída a Lei do Escravo Fugitivo, que estabelecia que escravos que fugissem deveriam ser entregues às autoridades. “Escravidão não era mais apenas um problema do sul. Antagonismos que estavam adormecidos há décadas já não podiam ser contidos, e uma terrível erupção de violência parecia inevitável”, tanto é que culminou numa Guerra Civil em 1861 – os estados escravocratas do sul se uniram para se separar do país, numa recusa a acabar com a escravidão que sustentava suas riquezas.

Nem Herman Melville nem sua obra ficaram indiferentes a isso. O autor chegou a se posicionar ao lado dos abolicionistas (aqueles que defendiam o fim da escravidão), mas isso não ficou nem um pouco evidente no livro – e nem deveria, se a boa literatura não deve servir de panfleto escancarado para as crenças e ideologias de seus autores.

Mas há algo ali que fui incapaz de ignorar. Era sempre muito destacado quando um personagem negro aparecia, sempre ressaltando seus músculos, corpos grandes e outras características físicas que deixassem bem marcada sua negritude. Algumas vezes, essa marcação vinha acompanhada de uns comentários no mínimo estranhos:

“Não sorriais se afirmo que esse negrinho era brilhante, pois até o negro tem brilho. Lembrai-vos do lustroso ébano que reveste os gabinetes dos reis.” (capítulo 93)

A tripulação do Pequod era composta de uma grande diversidade de etnias, com vários marinheiros vindos do Oriente e de algumas ilhas tropicais. No entanto, essa diversidade se fez notar pelo preconceito: em alguns momentos, a mesma demonização reservada às baleias era também destinada aos não-brancos.

“Com aspecto menos escuro, seus companheiros eram dessa vívida compleição amarelo-tigre peculiar a alguns aborígenes nativos das Manilhas – raça notória por certa sutileza diabólica, que alguns honestos marinheiros brancos supunham ser espiões pagos e agentes secretos e confidenciais do diabo.” (capítulo 48)

Ainda há uma certa exotificação dos cultos e crenças dos personagens não-brancos, além de não ser raro se referir a alguns deles como “selvagens”.

Tripulantes negrosIlustração por Anton Otto Fischer

Apesar de o autor ser branco, não é possível dizer com certeza se o narrador da história também o é.

“Pode me chamar de Ishmael” é a primeira e uma das mais famosas frases do livro. Há aí algo muito significativo: um homem que escolhe seu nome, como se seu nome real fosse outro, ou como se não importasse quem ele fosse. Há quem tenha visto nisso um indício de que o narrador seja, na verdade, negro ou mestiço, se naquela época Ishmael era um nome muito comum entre escravos. E em um livro cheio de referências bíblicas (como a de Jonas), é no mínimo curioso que se tenha escolhido para o narrador o nome do filho de Abrãao com Hagar, uma egípcia negra – e escrava.

Mas eu tenho minhas dúvidas. Se Ishmael era negro, de onde veio esse viés preconceituoso da narrativa? O esforço em destacar os personagens negros seria uma forma de Melville dizer, aos seus contemporâneos, que o seu romance era povoado de diversidade e que nele os negros não eram escravos, e sim marinheiros, protagonistas – ou príncipes, como era o “selvagem” Queequeg? Ou o racismo, especialmente naquele contexto, era um mecanismo tão poderoso na sociedade que falou através de Melville e das descrições esterotipadas de seus personagens? Reforço ou crítica? Nunca saberei.

Mas o pior ainda está por vir. Na cena mais revoltante de todo o livro (e olha que estamos falando de uma história cheia de crueldade gratuita), o cozinheiro de Pequod, um velho negro chamado Fleece, é humilhado por Stubb, o membro mais babaca da tripulação.

Stubb não ficou satisfeito com o ponto de cozimento de seu bife de baleia e achou razoável “punir” Fleece exigindo que o velho fosse ao convés dar um sermão nos tubarões que se banqueteavam do lado de fora com uma carcaça de baleia.

Enquanto eu tive vontade de encher Stubb de tapas, Fleece arrumou sua própria forma, cheia de sutilezas, de mostrar seu descontentamento com aquilo. Como mandado, ele foi até a amurada e deu início a um sermão que pode não ter sido endereçada aos tubarões em si, mas uma indireta aos brancos:

“Agora escutai bem, meus irmãos, tentai ser bem educados ao comer essa baleia. E, por Deus, na verdade nenhum de vós tem qualquer direito à baleia. Essa baleia pertence a outra pessoa. Sei que tendes a boca muito grande, porém, muitas vezes as bocas grandes têm barrigas pequenas, portanto o tamanho da boca não é para engolir, mas para tirar pequenos pedaços de carne para dar aos filhotes de tubarão que não podem se meter a fazer isso por si mesmos. (…) Não adianta pregar para esses malditos glutões, até que estejam com a barriga cheia, e a barriga deles não tem fundo. E quando conseguem enchê-las, também não ouvem porque correm rapidamente para o fundo do mar para dormir sobre os corais e não ouvem mais nada, para todo o sempre. (…) Malditos irmãos em Deus! Fazei todo maldito barulho que quiserdes. Entupi vossas malditas barrigas até que elas arrebentem – e depois morrei.” (capítulo 64)

Depois de ser humilhado e zoado por mais algumas páginas por Stubb, que nem percebeu a indireta, Fleece com muita impaciência e raiva diz “que o diabo me carregue se eu cozinhar outro filé para ti” e sai resmungando para si mesmo: “tomara a baleia o tivesse engolido, e não ele à baleia. Que o diabo me leve se ele não é mais tubarão que o próprio Sinhô dos tubarões”.

Foi impossível passar ilesa por tantas cenas de crueldade, sem sentir extremo desconforto, sem não passar pela minha cabeça “que vibe errada essa”. Por essa razão não posso dizer que caí de amores por Moby Dick, que a obra é linda, uma emocionante jornada. Ela revirou meu estômago diversas vezes. Me revoltou. Me deixou perturbada. Me fez ter dúvidas.

Se há algum alívio ou redenção, estão nesses momentos sutis, nessas pequenas vinganças representadas por um velho cozinheiro ou por uma incapturável baleia branca. Mas não havia respostas prontas, narrativas corretas, significados fáceis para o que Melville pretendia contar. É uma história sobre os dominantes ou sobre os dominados? Sobre uma busca fracassada ou sobre uma vingança concretizada? Sobre baleias ou sobre baleeiros? Sobre a glória dessa profissão ou sobre a crueldade ali contida? Não sei, de verdade, eu não sei.

No entanto, nenhuma resposta pode estar na superfície da leitura. Porque afinal é nas camadas mais profundas que as cachalotes realmente estão.

MobyDick_ChristineVeeschkensFotografia por Christine Veeschkens

Ilustração da capa: concept art de Rodolfo Damaggio, daqui.