Sou a coletividade

Desci da árvore. Foi meu primeiro grande-pequeno passo no mundo que logo passaria a chamar de “meu”. Essa percepção só foi possível quando um negócio chamado consciência começou a formigar dentro da caixa craniana. Que incômoda e curiosa foi a sensação de pela primeira vez me perceber como algo à parte do mundo.

Logo vi que eu tinha muito a fazer. Arrumar abrigo, conseguir comida. O mundo, aquela coisa fora de mim, era o predador mais perigoso – especialmente porque estava cheio deles. Precisei aprender a me defender. Criei as primeiras armas. Comecei a transformar as coisas ao meu redor em extensões do meu próprio corpo. Lanças, machados, coberturas para aquecer a pele. Não estava mais nua, nem desarmada.

Observando a natureza, descobri o fogo. Que era útil para aquecer, transformar comida em algo melhor de mastigar e digerir, afastar ameaças, iluminar a noite. Virei uma especialista naquela tecnologia. Esse domínio me deixou confiante, com a sensação de que eu finalmente estava acima das outras formas de vida.

Comecei a contar histórias. Deixar as marcas de minhas mãos nas paredes de casa. Pintei as cenas de caçadas, registrei meu dia a dia. A lembrança passou a ser um alimento tão importante quanto a carne e as frutas.

A segurança que adquiri me deixou mais à vontade para explorar lugares novos. Conheci novas paisagens. Atravessei continentes e milhares de anos. Descobri formas de me estabelecer nos lugares mais seguros, férteis, que me dessem melhores chances de desenvolvimento.

Procurei formas de facilitar o trabalho e a sobrevivência. Criei animais, cuidei de rebanhos, construí comunidades. Plantei e colhi. Aprendi a ler as estações e as estrelas. Criei os primeiros mapas de tempo e de espaço.

Inventei ferramentas, linguagens, deuses e rituais. Me reuni ao redor da fogueira, me preparei para a batalha. Competi por espaço na terra e na história. Lutei para que minha cultura, meus costumes e pensamentos sobrevivessem aos tempos. Me multipliquei e me dividi.

Fundei as primeiras civilizações. Ergui pedras, monumentos e cidades. Fiz da escrita outra fundação sólida para abrigar minha memória e meu legado. Contei histórias reais e inventadas, gravadas na fala ou na pedra.

Me revesti de grandeza. Virei o primeiro rei e os primeiros súditos. Comecei a planejar a expansão de meus territórios, o esmagamento de meus inimigos e a perpetuação da minha civilização. Dominei e fui dominada. Extingui e fui extinta.

Criei palácios, pirâmides, monumentos em honra aos deuses. Sacrifiquei animais, virgens e hereges para aplacar a fome divina. Vi deuses nascerem e morrerem, engolirem-se uns aos outros ou mudarem de forma. No meio do deserto, matei deuses menores e antigos para alimentar o Deus com letra maiúscula, o único e soberano, o que sempre existiu, mesmo que aquele houvesse sido nosso primeiro contato.

Estabeleci mandamentos para erguer uma nova civilização: não matar, não roubar, não cobiçar. Escrevi histórias e regras sagradas em diversos pergaminhos, que foram se acumulando durante os séculos até se tornarem a Bíblia. Escrevi o Alcorão. Escrevi a Torá. Escrevi lendas mitológicas com heróis, impérios e deuses que transavam com os humanos. Escrevi as primeiras poesias e as primeiras obras de ficção.

Comandei as grandes primeiras guerras e morri nos campos de batalha. Expandi meus domínios, construí a maior muralha, desenvolvi um comércio global. Troquei produtos, matérias-primas e conhecimento, num amadurecimento cosmopolita que não substituiu totalmente um desejo quase animalesco de querer tornar tudo meu.

Entendi o movimento dos planetas, mas não aceitei que a Terra não estivesse no centro do Universo. Fui aprimorando ferramentas, teorias e cálculos apenas para confirmar certezas que eu não estava pronta para receber – ou derrubando as certezas das quais eu não queria me desapegar. Queimei meus próprios livros, fui torturada e jogada na fogueira acusada de bruxaria. Tive que fugir ou mentir para escapar da acusação de heresia. Morri condenada pela praga que se alastrou sem controle e pelo obscurantismo que me impediu por séculos de entender os mistérios do mundo.

Naveguei pelos oceanos no impulso desbravador que desde sempre me moveu. A curiosidade e o fascínio pelo novo me moveram pela água, mas a ganância foi o que me moveu quando pisei em terra. Olhei com fascínio para aquele mundo completamente novo e comecei a pensar nas possibilidades que eu poderia tirar dali. Olhei com o mesmo fascínio para aquela cultura alienígena que chegava de além-mar para as terras que sempre chamei de casa, apenas um segundo antes de saber que aquele desembarque muito provavelmente representaria o meu completo extermínio.

Colonizei novos continentes, extraí suas riquezas e matei tudo o que se colocasse no meu caminho. Escravizei e fui escravizada. Fui sequestrada, tirada de minhas origens, apenas para descobrir uma nova terra hostil onde eu nunca teria lugar, a não ser como alguém subalterno. Paguei impostos à Coroa, planejei rebeliões e fui explodindo uma sequência de atos de independência. Me recusei a ser colônia, mas também me recusei a conceder qualquer tipo de liberdade sem guerras ferozes. Derrotei e fui derrotada. Expulsei e fui expulsa.

Fiz o vapor e a eletricidade trabalharem para mim, em trens, navios, fábricas e laboratórios. Acelerei o tempo, o ritmo de produção e de consumo. Desenvolvi remédios mais avançados para ajudar em cirurgias e tratamentos que estendessem meu tempo de vida. Aprimorei as armas que me matariam com muito mais eficiência.

Levei as artes e as ciências a um nível muito mais sofisticado. Estudei minha história com afinco para aprender com o passado que há muito havia deixado para trás. Olhar para trás era ver o quanto eu era talentosa e inteligente, engenhosa e inspirada, o quanto eu já havia construído e tudo o mais que eu ainda poderia fazer. Me dediquei a inventar e construir coisas muito maiores e audaciosas. Voei no primeiro avião. Ergui o primeiro arranha-céu. Desenvolvi o carro e, com ele, o trânsito moderno.

Construí e destruí. Transformei minhas maiores construções em ruínas quando veio a Primeira Guerra. E depois a Segunda. Depois da escravidão, precisei reinventar novas formas de crueldade genocida e criei o nazismo. Enchi campos de extermínios e morri sufocada em câmaras de gás. Fiquei tentada pelo fascismo e assustada com seu avanço. Precisava dar um basta e pensei que seria uma boa forma de intimidação jogar uma bomba nuclear para mostrar o meu poder. Bombardeei Hiroshima, morri carbonizada em Nagasaki.

Assinei tratados de paz, com o compromisso de fazer diferente dali em diante. Quis paz e amor. Sexo e drogas. Inventei o rock n’ roll e queimei minha guitarra – não como um gesto de autoritarismo velho como em ocasiões anteriores, mas de pura rebeldia jovem. Chegava em casa para ficar em volta da TV como um dia fiquei em volta da fogueira, mas agora quem contava as histórias era ela.

Viajei para o espaço e olhei para o planeta de fora, pela primeira vez, com os olhos cheios d’água – a mesma água salgada que brilhava em azul lá embaixo. Pisei na lua e dei outro grande-pequeno passo na minha existência, para depois pisar de volta na Terra, pegar uma metralhadora e voltar para a guerra.

Fui comer pipoca no cinema e depois ganhei um Oscar. Vesti um all-star, comprei um carro novo, tomei coca-cola, comi tudo o que eu podia e depois fui revirar o lixo procurando algum resto para matar minha fome. Ganhei meus quinze minutos de fama na TV, mas não fui convidada para a festa e fiquei na porta estacionando os carros.

Fiquei milionária inventando o computador pessoal e o Google. Fiz minha primeira conta de e-mail, criei um novo vocabulário para definir coisas que até então não existiam, passei a morar na internet e tirei várias selfies para mostrar ao mundo meu melhor ângulo. Meus domínios eram tão vastos e globais que precisei de uma realidade paralela e digital para abrigar toda uma nova cultura e uma quantidade de informação milhões de vezes maior do que tudo que eu havia produzido e criado até então. Perfil 1 lotado, add no perfil 2.

Usei os bancos de dados para expandir minha memória e braços robóticos para expandir minha força de produção. Deixei as máquinas fazerem o trabalho pesado, enquanto me concentrava em uma vida mais criativa e leve, indo de bicicleta para o trabalho, tomando iogurte natural e comendo salada orgânica ao mesmo tempo em que derramava litros de petróleo no oceano.

Fiz novas descobertas, compus os novos clássicos, criei formas novas de arte, escrevi de forma febril as mais variadas histórias que se eternizaram em forma de canções, filmes, livros e quadrinhos. Ensinei e aprendi. Inventei e destruí.

Matei animais para exibir no altar sagrado das prateleiras de supermercado e tantos outros para exibir no mural de bichos ameaçados de extinção. Cacei por esporte e devastei por profissão. Aumentei o termostato jogando mais carvão nas fornalhas e mais gasolina nos tanques de combustível, até as geleiras derreterem e a água vir bater na minha bunda.

Criei as primeiras máquinas inteligentes para continuarem os cálculos que não consegui resolver sozinha. Emprestei humanidade a elas e peguei emprestado delas seus melhores atributos para eu mesma virar um pouco ciborgue. Inventei novas línguas, enterrei deuses antigos e abracei a tecnologia como religião. Construí naves para fazer viagens mais longas, resgatando o espírito desbravador que me levou a pilotar as primeiras caravelas. Entrei em hibernação para acordar anos-luz depois, fora do sistema solar que assistiu meu nascimento.

Vaguei pelo espaço flertando com outros planetas que nem de longe me lembravam o ambiente acolhedor de casa; mas nem a Terra, a esta altura, podia ser considerada o ambiente acolhedor para mim como um dia foi. Explodi a Terceira e a Quarta Guerra, sendo que em uma usei as máquinas para lutarem por mim, e na outra vi elas se rebelarem e lutarem contra mim. Morri por sufocamento, doença, fome e teimosia. Assisti à minha civilização desmoronar nas bases já não tão seguras de um planeta tão esburacado quanto um queijo suíço. Quase sumi.

Sentei de frente para as estrelas me lembrando da infância, quando elas eram as únicas coisas luminosas que eu podia ver no meu mundo, bem antes dos letreiros das lojas e das explosões das bombas iluminarem os céus. Tentei me lembrar onde foi que as coisas começaram a dar errado, mas confiei demais na minha memória fora de mim e agora ela jazia na Terra, debaixo dos escombros do que havia sido uma grande e poderosa nação. Eu me vi ameaçada pela proximidade da extinção e do esquecimento.

Foi um longo caminho que percorri, das florestas hoje inexistentes até as galáxias antes inimagináveis. E, durante todo esse tempo, todas as evidências e sinais que recebi apontam que estou sozinha, sem mais ninguém para compartilhar minhas tragédias e grandes feitos, meus arrependimentos e alegrias. Pelo menos, não há ninguém para me culpar ou balançar a cabeça reprovando minhas atitudes lamentáveis.

O distanciamento permitiu que eu me lembrasse do dia em que desci da árvore e parti em uma jornada que agora parecia dar em um beco sem saída. Tudo isso pra nada? Por muito tempo, tentei entender qual era meu papel nisso tudo e o objetivo da minha existência, até criando deuses para me dar respostas que eu achasse mais confortáveis. Mas agora, tão longe de casa e tão perto do fim, eu finalmente pude entender.

Eu era a mensagem dentro da garrafa, destinada a alguém, em algum canto do Universo, que iria precisar saber o que deu errado e como conduzir as coisas de uma forma melhor do que eu consegui. Eu era a mensagem que servia como um lembrete do próprio Universo para si mesmo do que acontece quando uma espécie se desliga das outras e do mundo ao seu redor. Eu era uma mensagem de alerta, mas também de esperança: de que, em outro lugar e em outro tempo, alguém poderia construir um mundo completamente diferente e se desenvolver como uma espécie muito mais avançada e generosa do que eu fui.

Então sentei e esperei, por centenas de séculos e de anos-luz, até que alguém recebesse a mensagem e continuasse a história. Desci da árvore apenas para esperar, com alguma sorte, cair no buraco de minhoca mais próximo.

Imagem da capa: pintura rupestre em Cueva de Las Manos, na Argentina.