Enquanto a Terra gira

Acordo. O celular. As notícias do dia. O que aconteceu enquanto eu dormia. Quem falou o quê com quem. Quem foi preso? Quem morreu? É hoje que o Brasil acaba? O mundo continua de pé? Será que aquele youtuber postou vídeo novo no canal? Importante saber!

Nenhuma distopia me preparou para o fato de que viver em uma significaria lutar para me manter informada. Fui enganada. Eu esperava ter que usar uma katana, arco e flecha, ou ao menos minha furtividade para saquear um supermercado e me abastecer com enlatados enquanto o apocalipse come solto lá fora.

Em vez disso, a internet. É a arma que me coube para sobreviver, mas a sensação é oposta: tenho estado faminta. Não sei se a internet tem me ajudado a me manter informada ou se a tela estreitou meus olhos, enquanto perco de vista um mundo enorme que não cabe mais no meu campo de visão.

Vai ver eu que não sei usar isso aqui. Como eu fazia para encontrar coisas interessantes antes das timelines de rolagem infinita? Estou velha. Cansada. Com medo. O carrossel das redes passa rápido demais e, droga, vou ter que esperar o próximo meme para eu conseguir embarcar.

Um ministro bocoió posta um absurdo no Twitter e consegue pautar todo mundo que sigo, por um dia inteiro. O tuíte é mais que chacota; é grave, é sério, pois se trata de um ministro. Pois é parte de políticas que afetam nossa realidade, afetam vidas. Já não basta o desastre de incompetência, violência e impunidade que está sendo o atual governo, querem também me pautar? Dizer com o que vou ficar indignada numa tarde de sábado? Direcionar qual vai ser o tom e o conteúdo daquilo que escrevo, daquilo que penso? Aí é demais! Sem direitos sim, mas maluco dançando no meu palco não.

Desorientada. Com raiva. Cansada. É assim que estar informada ultimamente me faz sentir. E eu não sei do quê isso me serve. Se eu pudesse pagar minhas contas com raiva, meu 2019 tava pago. A realidade é que ainda preciso vender livros pra viver e se eu não tiver um cadim de esperança, lascou, porque o que mais se precisa para continuar a escrever é ter esperança de que um dia todo esse esforço desgraçado com trabalho independente vai dar em algum lugar que não o Alcóolicos Anônimos.

Esperança, ilusão, chame como quiser.

Algo nesse sentido começa a nascer em mim quando eu percebo que o Twitter não é a vida real. Que o Brasil não cabe nos Trending Topics nem se resume ao nível deprimente das pessoas que hoje ocupam o governo. Que as pessoas mais interessantes e inspiradoras não são as mais seguidas do Instagram. Que há muita gente fazendo coisas incríveis, nem que seja arrumar um jeito de colocar comida na mesa, e que continuam a carregar esse país nas costas apesar de não virarem notícia, apesar de seus nomes permanecerem desconhecidos.

Há esperança quando me vejo como parte de um povo que trava pequenas batalhas cotidianas e dá um jeito, como a mulher que outro dia cruzou comigo na Teodoro Sampaio, arrastando o pé direito na saída do metrô porque a sandália arrebentou. Será que conseguiu chegar ao trabalho? Consertou a sandália? Arrumou outra? Como fez para voltar para casa aquele dia? Eu não sei! Não há uma thread no Twitter que me conte qual foi o destino dessa mulher. Mas ela existe, ela está em algum lugar agora, e não foi a internet que me mostrou.

Esse é sim um mundo de incontáveis tragédias, algumas próximas demais para conseguirmos ignorar; mas é um mundo enorme, com espaço também para o incrível e para a esperança, que geralmente moram no banal e no cotidiano, em coisas pequenas que não rendem cliques ou RTs. 

A Terra continua a girar mesmo que não seja um dos assuntos mais comentados do momento. Pessoas continuam a fazer coisas incríveis, ainda que não estejam no centro das atenções. Não posso deixar a internet me fazer acreditar que acabou a esperança. Basta olhar para fora. E saber que a esperança existe quando escolho para onde quero olhar.

Mar Cáspio visto de um satélite. Uma das imagens incríveis e gratuitas neste perfil da NASA.

Texto originalmente publicado em abril de 2019, edição #38 de Uma Newsletter.

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