O nome da guerra

Os últimos dias têm sido uma sequência de imagens devastadoras. Sinto que preciso me lembrar do máximo que eu conseguir, para um dia tentar explicar o contexto dessas imagens. Porque nada faz sentido, como num sonho surreal provocado por uma pesada indigestão.

Tento imaginar como os historiadores do futuro chamarão a época de agora. Qual nome darão? A época da pandemia? Da ascensão do nazismo tropical?

“O que é guerra? A Segunda Grande Guerra. Isso é guerra. Aqui é assim. Não é uma guerra.” Ouço essas palavras com a voz de minha irmã. Ela lê um trecho da peça “Sete”, de Dione Carlos. Verdade: não é uma guerra, porque aqui é assim. É o normal.

Se até o normal mudou de nome (agora é o novo normal, o normal hipster), então do que podemos chamar isto que não é guerra?

Não é uma guerra. É uma não-guerra.

Vamos, por enquanto, chamando de “esses tempos”.

na linha de frente. daqui.

Aliás, como decidem o nome das guerras? Como se chamava a Primeira Guerra Mundial antes da Segunda Guerra Mundial? Ou ela já nasceu como a promessa de que não seria a única? “Pessoal, se tudo der certo, vai rolar a continuação!” Adoramos uma sequência, afinal.

Se não é guerra, por que mataram João Pedro? Se não é guerra, por que precisaram de 80 tiros? Se não é guerra, por que não respondem quem mandou matar Marielle?

Quem criou o nome Guerra Fria foi um multimilionário e “conselheiro” de vários presidentes americanos. Vai ver é preciso pagar pelo direito de dar nome a uma guerra. O cara fez isso no meio de um discurso: “Não sejamos enganados. Estamos hoje no meio de uma Guerra Fria. Nossos inimigos podem ser encontrados lá fora e em casa. Nunca esqueçamos disso: nossa inquietação é o coração do sucesso deles.”

Conveniente ele não ter pintado a guerra com cores mais quentes. Congelada, poderia durar mais. Importante para quem lucra.

Aqui, eles têm pressa. Querem que morram, rápido. “E daí? Que morram nove mil. Que morram dez. Que morram vinte, mas que morram logo, para essa merda acabar e pararem de querer arrancar minhas hemorróidas nessa porra!”

Desculpe vazar essa voz aqui. Mas parece que muita gente não estava ouvindo as coisas que ele dizia. Ele sempre disse.

“As coisas só vão mudar quando tiver uma guerra civil aqui dentro. Fazendo o trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil”.

29.534 mortes registradas oficialmente, e contando.

daqui.

São tempos de morrer de falta de ar, causada por polícia ou covid. Sem ar, sem voz. Uma guerra que mata por sufocamento. Porque não basta matar, precisa torturar. Precisa demonstrar poder, precisa se exibir, é uma guerra movida pela vaidade. Mas não é uma guerra, veja, não são uniformes, é apenas a camisa da seleção!

Se não é guerra, o que está enterrando pessoas aos milhares, todos os dias?

coveiros em manaus, daqui.

“Não é a nossa galera que está morrendo.” Não consigo mais esquecer do que ouvi. Sempre foi uma questão de galera. Minha galera. Aquela galera. Quem é bom. Quem é mau. Quem vive. Quem morre. Mas quem mata?

O Estado é nosso inimigo”, disse KL Jay.

Está proibido falar em guerra. Palavra atrai negatividade, fiquemos leves! Não somos obituário, chega de carregar cemitérios nas costas!

Nesses tempos, até os símbolos brigam por espaço. Ficam flutuando ao nosso redor, como palavras expelidas em gotículas de saliva que ficam pairando muito tempo no ar. A disputa acontece no campo do invisível. Disputa pela narrativa, pelo significado das palavras, pelas cores e desenhos de alguma bandeira. 

Uma dezena de alucinados marchando à noite em Brasília, com máscaras brancas e tochas. Bandeira nazista exibida em protesto. Um copo de leite que é apenas um copo de leite. Um policial aponta um fuzil para um rapaz desarmado.

Não é guerra, é um déjà-vu. 

Está acontecendo há muito tempo, como se estivéssemos presos numa reprise. São sempre as mesmas pessoas morrendo. As pessoas de sempre no poder. A mesma política de extermínio, há gerações. Esta guerra tem nome.

foto de Annelize Tozetto

Publicado em Uma Newsletter edição #63, junho de 2020.