2 cavaletes, 1 tábua

A mesa é um pequeno altar. Um lugar sagrado onde reúno os artefatos para invocar ideias e produzir magia: cadernos, canetas e marcadores, o computador, um planner, livros. Criação católica deu nisso: santificar o lugar onde o trabalho é feito, envolver com essa aura ritualística. Vai vendo. Mas acho bonito, mesmo. Gosto de conhecer a mesa dos outros, saber onde acontece a mágica. Vi a mesa do Neil Gaiman e nem uma nude dele teria me ouriçado mais: fiquei pirando com aquele retrato do processo dele, na forma de uma completa bagunça, nenhum centímetro de mesa à vista, de tanto papel e livro espalhado, uns fios, até um microfone no canto. Parece até minha mesa, às vezes.

Não acredito em mesas tipo Pinterest, estilo blogueira organizada. Pero que las hay, las hay. Ficam bem na foto, mas desconfio do resultado do que produzem sem o tempero da bagunça, dos papeis que começam a ficar soterrados conforme o processo avança. A bagunça parece que se cria sozinha, cresce feito mato. Tem vezes que preciso parar e arrumar a mesa para seguir em frente. Arrumar a mesa é o processo físico de organizar as ideias. Já a bagunça é o indicativo visual de que tem algo acontecendo, que estou avançando, mudando as coisas de lugar, fazendo uso, perdendo e encontrando.

Minha primeira mesa de trabalho foi um pedaço da mesa da cozinha na casa dos meus pais. Usava a cadeira mais próxima da parede como minha prateleira, meus livros e quadrinhos todos empilhados ali; também era onde eu recolhia meus papéis e cadernos quando precisava dar espaço para a mesa na hora de comer. Meu espaço para escrever-desenhar-estudar surgiu em um canto da cozinha, de frente para o fogão. O lugar com a melhor luz da casa.

Ilustração: Pamela Colman Smith

Depois disso, fui conquistando outras mesas. Gostava de, no primeiro dia no trabalho, descobrir qual seria a minha mesa, conhecer meu computador. Com o tempo, o espaço ia ficando meu, com a minha decoração, minha caneca, um cartaz escrito “Don’t panic”, meus papeizinhos de brainstorming, a bagunça de cultivação própria. Era bom ter vizinhos de mesa, olhar para o lado e ver alguém concentrado, ou conversar entre os espaços que os computadores deixavam para a gente se olhar. Às vezes alguém deixava a mesa, outra pessoa passava a se sentar no lugar. Às vezes, quem deixava a mesa era eu, e levava minhas coisas para que ela pudesse conhecer sua próxima dona.

Das primeiras coisas que comprei com meu salário foi uma mesa de desenho reclinável. Tenho até hoje. Um tampo sólido e claro que ganhou várias manchas com o tempo. Já não uso reclinada há muitos anos, ou os papéis escorregam. Deixou de ser mesa de desenho. Virou mesa do computador, que no homeoffice da pandemia o Marcos tem usado mais. Virou mesa de gravar podcast, mesa de escrita, mesa de fazer terapia.

O que não falta aqui é superfície para cultivar bagunça. Nossa casa tem sido tomada pelo trabalho, praticamente o quinto morador dessa casa, então meio que qualquer mesa é mesa de trabalho, no momento.

A outra grande mesa é a que fica no ateliê, uma mesa alta, para trabalhar de pé, e comprida, para as criações que exigem mais espaço para bagunça. Veio de uma época em que eu estava convencida de que escrever de pé era melhor. Entenda que vivo com alguém muito parecido comigo no quesito ideias malucas, então começamos a pensar na mesa que tornaria aquela escrita vertical possível.

Que montar mesa o quê, vamos comprar dois cavaletes e uma tábua na Leroy e é isso. Nem envernizamos a mesa, são basicamente três pedaços de madeira empilhados. Fácil de desmontar e de dobrar os cavaletes, como se fôssemos fugitivos que sabem que a qualquer momento vão precisar puxar a carroça e cair no mundão.

Ilustração: Moebius, 1991

Apesar do tamanho, não é a mesa principal de trabalho. Virou a mesa da impressora, a mesa da lojinha. A minha mesa de escrita é mais portátil ainda, talvez porque eu escreva mesmo como uma fugitiva. A mesa deixa de ser o móvel e passa a ser o sistema: o computador, um par de cadernos, um estojo, o livro da vez. Objetos com o qual eu conjuro um espaço na minha cabeça para a escrita e a leitura. O Murakami chama de escritório portátil. Cabe na mochila, cabe no meu colo, cabe onde eu preciso levar a escrita. O cantinho na mesa da cozinha me treinou para criar esse escritório – do latim, literalmente, o lugar de escrita – onde fosse possível, onde eu estivesse no momento.

A próxima mesa grande tem que ser para a sala. Agora não precisamos, mas ela se encaixa no espaço do queremos, em algum lugar do futuro. Essa vai precisar ser uma mesa sólida, das que se gasta tempo montando, porque será mesa para reunir gente, que é de outra espécie de bagunça. A bagunça de vozes e de desentendimentos rolando ao vivo, sem mais a intermediação de telas. Uma mesa onde as ideias circulam como bichos-de-luz atraídos pela fogueira. A mesa que, mais que altar, é fogueira, com pessoas bebendo e comendo ao redor, contando histórias e tendo visões de futuro, que é outra forma de alimentar com palavras, de nos mantermos acesos.

É sobre essa mesa híbrida –  meio de trabalho, meio de jantar – que eu quero escrever. Na melhor luz da casa.


Este texto faz parte da blogagem coletiva Estação Blogagem, com o tema Tarô: cada semana de novembro será regido por um naipe que vai inspirar a produção dos textos. Para saber a programação e participar, leia o primeiro texto aqui.