Mineiras, joalheiras e suas pedras preciosas

1.

Sou mineira, filha de mineiros, neta de mineiros e por aí vai. Uma parte da minha família veio do norte de Minas. Diamantina. Devo ter tido algum antepassado garimpeiro. Pode não ter tido escolha, ou pode ter sido atraído pela promessa de conseguir alguma riqueza cavucando pedra o dia inteiro lá em Minas Gerais, aquele lugar onde cortam a sua cabeça se você reclama dos impostos. Geralmente o lugar onde as pedras mais brilham é também de onde escorre mais sangue.

Claro que essas histórias estão distantes demais de mim para que eu veja seus contornos com mais definição. Ficam como símbolos, então, escondidos nas repetições que me cercam. Arquétipos de um fim marcado.

Fosse uma carta de tarot, O Mineiro significaria tanto brutalidade quanto delicadeza. A figura seria um homem curvado, maltratado pelo sol, castigando pedra com uma picareta. Movimento para representar a violência da exploração da terra, da ganância. Ainda assim, ele é o peão. Quem encontra o diamante, faz o trabalho braçal de separá-lo da pedra bruta, nunca é quem mais lucra com ele. O Mineiro encontra o brilho, mas ele mesmo é empoeirado, sujo de terra, tosco. Se ele é o cara fazendo o trabalho duro, tem alguém mais esperto que ele desfrutando do verdadeiro brilho. Provavelmente na Europa. O Mineiro tem direito apenas ao brilho da pele suada e olhe lá.

Seu outro instrumento, a peneira, é a representação da delicadeza. Lavar em água corrente os pedregulhos para ficar mais evidente a claridade dos pedaços que interessam. O Mineiro tem paciência e olhar afiado para encontrar o que é precioso entre o que é ordinário. Trabalho de mexer com os dedos, como pinças, com jeitinho. O Mineiro é quem revela os diamantes. Mas não fica com eles. Suas mãos já estão ocupadas demais com trabalho.

2.

Foi ouvindo “Balançar” que me dei conta que o que Flora Matos faz é trabalho de joalheira. Ela manja do ofício de lapidar os versos que vão ficar como ornamentos pendurados na nossa cabeça. Nessa letra ela entrega o ouro de que sabe o que está fazendo, que é intencional:

Você dança com a minha música, mesmo sem entender tudo que eu digo

Eu sei que você vai balançar

Ei, mas deixa eu te contar um pouquinho de tudo que eu sou

Posso ser, porque meu trabalho tem maior valor

(…)

Você me inspira, eu te inspiro

Você entende o que digo, mesmo sem eu ter que falar

— Flora Matos, “Balançar”

Detalhe é que a música é a participação dela no álbum do WillsBife, “Febre amarela”. O álbum é do produtor, do DJ. A letra de “Balançar” me parece chamar a atenção para a batida, para o ritmo. Quase como se Flora quisesse apontar para o trabalho do WillsBife, e mostrar o quanto brilha, o quanto é refinado. Enquanto enumera o nome de marcas de luxo, parece estar atribuindo valor, na verdade, ao trabalho por trás de uma música capaz de tocar a pessoa a ponto de fazê-la querer dançar.

Will you pay for my art?

Talvez eu ouça tanto Flora Matos porque suas músicas apontam com frequência para trabalho, para a luta do artista independente pelo seu valor. Como não me identificar? Ainda mais vindo de uma artista multifacetada, que também produz, faz mixagem, direção de arte.

O dinheiro aparece nas músicas dela com frequência, como produto direto da arte, de trabalho. Às vezes, os versos apontam para as dificuldades de obter, mais que o dinheiro, o valor invisível do reconhecimento. O dinheiro e a riqueza aparecem, mas o que está no centro é o fazer.

Ei, no dia que eu comprar Porsche eu falo

Por enquanto todo dinheiro que eu faço eu guardo

Que ficar rico não é do dia pra noite em São Paulo

(…)

Fiz o melhor

Antes que alguém fizesse

Com finesse 

Na arte de ser o que sou

E ser chamada de mestre

Pelas mesmas pessoas

Que tentam sugar os meus versos

Quem bota fogo na fogueira não passa um reflexo

Não tem nexo

Antes de usar a palavra eu meço

— Flora Matos, “Preta de quebrada, Pt. 2

ilustração: Pamela Colman Smith

Dinheiro e arte têm uma relação complicada. Vivo voltando a essa questão. Reivindicar o valor do próprio trabalho é tecla que nunca se acaba de bater nesse caminho que escolhi traçar. Vai ver porque sou colonizadérrima pelo capitalismo, vai ver porque eu ache um horror glamourizar pobreza, vai ver porque sou uma artista mais formiga que cigarra, vai ver é porque é coisa de mineira ficar fascinada pelo brilho do que se desenterra com muito suor; mas vejo arte como trabalho e, como trabalhador, o artista merece ser pago. Querer viver com conforto não deveria ser sentido como pecado, como algo sujo. Essa propaganda muito convém a quem acumula, de fato, a riqueza. 

Olhar para o dinheiro como um símbolo — porque sim, é uma ficção inventada por nós — é perceber que moedas têm dois lados. Se, por um lado, pode representar o lucro, o capitalismo, um sistema opressor, a moeda é um símbolo para uma troca que se estabelece entre duas pessoas. Algo que se oferece em troca de um outro algo. Há muita riqueza na troca. E nada cria mais disso, dessa energia que preenche o espaço entre duas pessoas, do que a arte que somos capazes de produzir, às vezes com um punhado de palavras garimpadas como diamantes em um dia muito quente.

“Melhor coisa que fiz foi juntar o dinheiro pra fazer tudo do jeito que acredito

E olha onde eu tô

Ainda não tenho tudo o que eu quero

Mas tudo que eu tenho pretendo continuar dando o maior valor

E tudo o que eu tiver de mais

Eu quero mais é dividir com quem eu realmente achar que é merecedor”

— Flora Matos, “Sonhos Gangsta

3.

Talvez os bichos ferozes construam coisas às quais não sabemos dar valor. É importante pensarmos no valor que cada coisa ou lugar tem para cada bicho. Só assim vamos saber por que razão cada um é como é. Depois de entendermos melhor, a beleza comparece.”

Valter Hugo Mãe

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Este texto faz parte da blogagem coletiva Estação Blogagem, que organizei com a Gabi Barbosa, com o tema Tarô: cada semana de novembro será regido por um naipe que vai inspirar a produção dos textos. Para saber a programação e participar, leia o primeiro texto aqui.