Fraude

Fui roubada. Me cai essa ficha quando fico de fora da minha conta do Airbnb, porque aparece, na verificação em duas etapas, um número de telefone que não é o meu, um número com código do Cazaquistão. Tento ajuda com o suporte. Pedem para confirmar meus dados. Desculpe senhora, as informações não batem. Claro que não devem bater. Se conseguiram trocar meu número por esse do Cazaquistão, devem ter mudado as outras infos também. Tento buscar outras formas de recuperar a conta, de provar que ela é minha mesmo, mas para acessar os caminhos que o suporte que me dá, eu preciso estar logada. Não adianta explicar que o meu problema é justamente não conseguir logar. Absurdo não é esse sistema de verificação, absurda devo ser eu, que não consigo provar que eu sou eu mesma. Como é que se prova que eu sou eu quando o sistema diz o contrário? O sistema está sempre certo. Deve estar. Não tem a mesma fragilidade da minha identidade, que pode ser tomada por qualquer um no Cazaquistão, me deixando com a impressão que a golpista tentando invadir a conta de outra pessoa talvez seja eu.


The Circle é o tipo de reality show bagaceira que gosto de acompanhar. Consiste em um jogo em que pessoas isoladas, cada uma em seu apartamento cenográfico, conversam com os outros jogadores apenas por chat, nesse sistema também cenográfico chamado The Circle, disputando um prêmio em dinheiro que será concedido ao jogador mais popular.

Para chegar lá, essas pessoas participam de uma dinâmica na qual precisam com frequência classificar os outros jogadores em um ranking. Os primeiros colocados de cada rodada se tornam os influenciadores, que têm o poder de bloquear um jogador, eliminando-o da competição.

Qualquer semelhança com a realidade etc.

Entra temporada, sai temporada, o jogo se torna bem previsível. As estratégias acabam sendo as mesmas, com jogadores diferentes: construir alianças, mostrar-se verdadeiro, mirar em quem se suspeita que está sendo falso.

No final das contas, popularidade é bem menos sobre a pessoa ter uma personalidade marcante ou feitos incríveis, e bem mais sobre ela ser capaz de convencer o outro de que ela é capaz de protegê-lo quando o dele estiver na reta. Ninguém coloca uma pessoa no topo do ranking de graça. Coloca por acreditar que terá uma vantagem com aquilo. Interesses próprios em primeiro lugar. O jogo não tem culpa de o ser humano ser tão previsível.

não me diga que ficou surpresa

Um tema recorrente no jogo é a caçada aos catfish. Gente com perfil fake, que assume uma identidade falsa para avançar nos degraus da popularidade: garota lésbica usando a foto da irmã e fingindo ser hétero para flertar com os caras; homem gay fingindo ser mulher; duas pessoas fingindo ser uma só; entre outras variações de jogadores, que vão desde os que usam apenas a aparência de outra pessoa, mas sua personalidade própria, até os que jogam no modo 100% fingimento.

quem protege o rabo de quem?

Fico sem entender a obsessão em desmascarar e eliminar quem está usando um perfil fake. Em primeiro lugar, por ser inútil. Os catfish chegam à final com frequência.

Outra: que diferença faz alguém usar foto e nome falsos se as intenções de formar alianças são as mesmas de quem está sendo “honesto”? Como se honestidade fosse usar seu próprio nome e imagem. Quem já tem algum tempo de estrada na vida adulta (na internet ou fora dela) sabe que nem sempre. Mas a insistência em reconhecer quem é “verdadeiro” continua lá. Quem é de verdade sabe quem é de mentira, etc.

Como se apenas um outro pudesse validar o que somos — ou podemos ser.

você que lute para ser um verificado

Catfish é nome do peixe que em português conhecemos como bagre. Tornou-se sinônimo de pessoa que se passa por outra na internet. Provavelmente por sua aparência: um peixe com bigodes de gato. Um híbrido desconfortável. Ninguém quer por perto alguém que não consegue definir com certeza. Meu filho, ou você é peixe ou você é gato. Decida-se. Ambiguidade, sabemos, gera desconfiança.

Que culpa tem o bicho que só pode ser aquilo que é?

Há uma beleza no catfish, de onde eu vejo. Uma beleza em apontar a possibilidade de definir-se a si próprio, ainda que fingindo, ainda que com pedaços de fantasia, ainda que isso deixe os outros confusos, desconcertados ou incapazes de verificar se aquele alguém é ou não verdadeiro, porque para fazer isso seria preciso admitir que também não são o que dizem ser, não o tempo todo.

Se gritar “pega catfish“, não fica um, etc.