Lygia Fagundes Telles partiu centenária sem que ninguém soubesse. Passou a vida dizendo que era cinco anos mais jovem do que a idade que realmente tinha. Acho adequado: a vida de escritores costuma estar cheia de ficção.
Às vezes acontece da imagem mental que temos de nós mesmos não bater com o que dizem os documentos, os números ou as expectativas que nos atravessam durante a vida. Então a gente inventa.
O problema é que o tempo é indiferente aos nossos desejos. Ele passa e carrega a todos. Por mais que nos apeguemos a uma fração da nossa vida em que tínhamos mais colágeno, mais tempo livre e mais falta de noção para o ridículo, em um piscar de olhos (ou dois anos entocados para não morrer numa pandemia), a gente se percebe como o tiozão esquisito que fala “como você cresceu, eu te peguei no colo!” para uma criança que não se lembra de você e que fica desconfortável com o nível de intimidade com que você fala com ela.
Que loucura, agora somos nós do outro lado do constrangimento. Vai ver por isso há quem se incomode em encontrar crianças no rolê: é também se deparar com a verdade incômoda de que envelhecemos, de que não somos os jovens que imaginamos ser.
Para o meu olhar de criança, adultos eram como totens altos demais para alcançar, com a cabeça acima das nuvens, cuidando de assuntos que eu sequer podia imaginar, de forma que o que eu mais conseguia ver eram as sombras gigantes que eles projetavam no chão.
Envelhecer é o processo de nos tornarmos esses varapaus ameaçadores e misteriosos, e de descobrir, com nossos próprios olhos, que a vista para acima das nuvens é bem deprimente na maior parte do tempo, que o pensamento fica meio enevoado com o acúmulo de medos e que o mundo continua tão inexplicável quanto antes.
A diferença é que essa falta de sentido que exalava de todas as coisas, a princípio servindo de motor para nossa curiosidade de macaquinhos metidos a exploradores, passa a se tornar fonte de angústia constante.
Marieta Severo disse em entrevista recente que “o que move a gente é curiosidade, a vontade de aprender. Quando você começa a perder isso, aí sim você acaba. Em qualquer idade.”
Ver as mudanças que a idade opera é um processo mágico. Meu corpo ganhou novas dimensões, aparecem novas ziquiziras, estalos e marcas de expressão, diminuiu minha resistência física e o entusiasmo para acompanhar cada nova moda e memes e polêmicas, todas passageiras e vazias, mas a disposição para aprender continua, com a vantagem de um cérebro mais afiado, que passou por mais experiências, e da autonomia de tomar decisões de como viver a minha vida. Envelhecer é poder.
Se tudo der certo, vai chegar a vez de cada uma dessas crianças e jovens de hoje passarem por esse processo. Até lá, somos nós, os adultos cringe, os responsáveis ao volante.
E não é preciso ter filhos para também termos a responsabilidade de sermos influências positivas para as crianças que nos cercam. É por imitação que primeiro se aprende.
Não dá para saber ainda o que o gesto de se aprisionar em uma versão adolescente de si mesmo, na resistência de assumir o chamado para ser adulto, vai ser entendido pelas gerações mais novas. Mas espero que seja a percepção de que o tempo pode ser terrível, mas é também o único veículo conhecido capaz de nos levar a versões mais poderosas de nós mesmos.