Caralho, galera

Caralho. Galera. Andar à toa. Amo que expressões que a gente usa e soam tão jovens vêm da época das navegações. Um bando de náufragos mesmo. Não dizem que naquele tempo as pessoas se guiavam pelas estrelas? Hoje as estrelas que buscamos para orientar nossos caminhos estão numa tela, em nossas mãos. Ainda emitem luz, mas há controvérsias se estão nos levando para algum lugar.

Não sei se em algum momento a humanidade já existiu sem esse defeito de fábrica que é cada indivíduo criar idealizações às vezes inalcançáveis de si mesmo e dos outros. Até onde se sabe, faz parte do pacote que é vir com linguagem instalada. Antes da internet, criar essas imagens do que queremos ser (e nos frustrarmos no caminho) já fazia a gente pifar. Agora, então. Qualquer um está a um viral de se tornar um astro. Uma corrida do ouro para nos transformarmos em imagens, essas, que parecem tão mais sólidas e duradouras do que o vapor que a gente forma dentro da própria cabeça. Como isso não ia derreter nossos miolos?

Está tudo mais exagerado agora, mas penso se já não era assim há muito tempo. Digo, essa loucura pela criação de ídolos. É reconfortante pensar que as coisas são muito antigas, como li num texto da Ariela. Porque aí posso me iludir com a ideia de que a solução para todas as merdas de agora já foi imaginada, a gente é que não prestou atenção. Ou está olhando para os lugares errados. Estamos perdidos? Calma. Estar perdido é o maior sinal de que se está caminhando. Para onde, sei lá. Depois a gente vê. Na volta a gente compra.

Não estamos fazendo nada de tão diferente, só a escala mudou. Continuamos navegando, agora em outras ondas. Continuamos cultuando deuses, celebrando os feitos dos heróis, construindo estátuas. Agora, elas têm seguidores.

Faz muito tempo ninguém realmente inventa a roda. Faz muito tempo a gente cria imagens e nos projeta para dentro delas, porque, bem mais do que acreditar no pai, no filho e no espírito santo, a gente acredita que imagens não morrem.

Duas cenas seguidas de um filme antigo, imagens em preto e branco. Uma mulher branca, magra, de cabelo chanel liso e franja, bem estilo anos 60, fala gesticulando com as mãos, os dedos encostados uns nos outros delicadamente. Ao seu lado, um homem branco, de óculos e terno, a observa admirado com o queixo apoiado na mão. Atrás dos dois, o que parece ser uma penteadeira com a foto de um galã pendurada no espelho. No primeiro quadro, a mulher diz: "And every time they take my picture". E no segundo quadro ela completa: "there's a little less of me left"
Imagem do filme “Who are you, Polly Magoo?”, 1966

Criar ícones é um brinquedinho divertido para nos distrair da consciência de que a morte está bem ali na frente. Olha, mais um filme de origem do Batman! Um ícone não se esgota, é uma beleza. Pode fazer mil filmes bomba sobre ele, que ainda cabe projetar mais idealizações ali dentro.

Estar perdida na personagem também seria possível em outras épocas. Mas se me colocassem para prefeita da internet eu colocaria, por precaução, uma placa bem grande na entrada: “aqui tudo é ficção”. Só como lembrete mesmo. Ou melhor, um aviso de segurança. A gente se distrai e esquece que estamos navegando nesse tipo de água. É preciso tomar cuidado para não se afogar.


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