Carne que escreve

Por enquanto, ao menos enquanto existirmos, cabe a nós a tarefa de fazer arte.

O que não gostamos de nos lembrar — e talvez por isso convenha a narrativa de que criar arte é coisa para poucos escolhidos que nasceram com um “dom”, envolvendo o processo e a própria arte numa aura mística, sobrenatural, até inalcançável para meros mortais — é de que toda arte já produzida foi feita por criaturas de carne.

Carne que pensa e que cria máquinas, como dizem os personagens de um curta de ficção científica de que gosto muito.

Os livros que você mais gostou de ler, os filmes que te inspiram, as pinturas que enchem seus olhos de beleza, as músicas que dão mais sentido para os seus dias: tudo foi feito por alguém de carne, com vísceras quentes, gente que fica doente, que sangra, que precisa comer, que transa, gente que saiu de uma vagina, gente que envelhece. 

É bom lembrar que a arte que às vezes nos salva não foi feita no éter. É feita por gente que respira e gente que morre. Gente como eu, como você.


“Carregamos nossos mortos porque é isso que fazemos. É o que somos. Cada um de nós é a soma de todos os que vieram antes. Somos a soma de nossos mortos. Somos o que resta deles, literal e figurativamente. E o que restar de nós permanecerá nos outros. Somos os mortos que andam, trabalham, sonham, julgam e buscam. Somos nós os mortos que perdem seus mortos e esperam o dia de ser os mortos de alguém.”

— FAl Azevedo

A revista do Drops da Fal é uma das coisas mais bonitas e cheias de significado que leio na internet.


Texto originalmente publicado na edição #62 da minha newsletter, em maio de 2020.

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