As conchinhas mais brilhantes que 2023 trouxe para mim

Um ano é também uma coleção de histórias. Algumas passam, outras grudam na pele. Permanecem, chegam a se misturar à nossa substância. A pessoa que sai do outro lado do calendário sai um pouco diferente. Essas belezas que coleto pelo caminho também são uma lembrança das ondas que me moveram. Personagens, palavras, imagens bonitas. Recolho com os dedos, separo da água e da areia, guardo com cuidado. De alguma forma, essas conchinhas também contam a minha história.

Aqui, um pouco do melhor que vi, li, ouvi e amei em 2023.

Melhores leituras

“Anna”, Mia Oberländer

Primeira história em quadrinhos que me atrevi a ler em alemão. Mulheres gigantas sofrendo numa cidade de interior cercada de montanhas. Viver sob a sombra da mãe, sob a pressão da avó. A luta para se adequar quando ser grande te afasta de todos. O lembrete, em traços e cores belíssimos, de que, perto das montanhas, todo mundo é pequeno.


“Kafkianas”, Elvira Vigna

A autora conversa com os contos de Kafka, mas ao mesmo tempo a conversa é com você. Comigo? Sim. Ela me coloca no lugar de cada protagonista dos contos e os interpreta, como se tivesse acabado de ouvir um sonho. O que é a lei? Quem são os chacais? E se for a montanha que conta essa história? “Onze filhos” foi o capítulo que me pegou: cada filho seria um projeto de Kafka, essa é a teoria. E ele resolve seguir o mais frágil, aquele com menos chance de dar certo. Sim, Elvira, é bonito demais.


“Norte”, Oli Maia

Um romance tão rico de imagens quanto um filme, que me transportou para os cenários mais ermos da Argentina. Estrada, poeira, desencontros, a fronteira entre o português e o espanhol. Por que pessoas adultas desaparecem? A história de um detetive seguindo os rastros de alguém que sumiu há mais de 30 anos, enquanto tenta entender seus sentimentos por um carioca charmoso que o acompanha na viagem. Há muito mais a se descobrir numa investigação do que a solução do mistério. Tem muita ternura. Me lembra da beleza que é ser latino-americana.

Melhores filmes

Rotting in the sun, direção de Sebastian Silva

Tinha assistido ao Crystal Fairy and the Magical Cactus, uma brisa divertida e cheia de coração, mas nada perto do que é esse outro filme, em que o diretor chileno aparece interpretando ele próprio. Quer dizer, se ele for mesmo um viciado decadente com pensamentos suicidas. Se o filme fosse o que o trailer dá a entender, já seria incrível. Mas tem uma virada tão drástica que me deixou até desnorteada. Tem pulsão de morte, um festival de pintos, cachorro viciado em comer merda, subceleb de Instagram e até Google Translate fazendo parte da atuação. Catalina Saavedra brilhou demais.


Brujería, direção de Christopher Murray

Uma co-produção chilena, mexicana e alemã para contar uma história com os horrores da colonização: indígenas sendo acusados de bruxaria em uma ilha no Chile, no século 19. Uma garota indígena procura justiça pelo pai, assassinado por um colono alemão (o ator está em Dark, surpresa nenhuma). Mas não existe justiça na religião e na lei dos brancos. Baseado em fatos reais, dizem, mas a magia está lá. O poder de mudar de pele. Mas poder maior mesmo é aceitar as próprias origens.


Fire of love, direção de Sara Dosa

A história real de um casal de cientistas que deu a vida para estudar vulcões de perto. As imagens mostradas no documentário, atordoantes de bonitas, foram feitas pelos próprios, Katia e Maurice Krafft. Aprendi muita coisa, inclusive que os vulcões cinza, que explodem em fumaça e fuligem, são os mais perigosos e mortais. Mas o solo atingido pela erupção deles tempos depois se torna mais fértil. A destruição também é uma força capaz de gerar vida. E a  lava bem pode ser o combustível de uma história de amor. 

Melhores séries

Cangaço novo

Uma história onde seguimos na caçamba de caminhonetes que cruzam em alta velocidade paisagens desérticas do nordeste brasileiro, como se fizéssemos parte de um bando de cangaceiros modernos, que aterrorizam cidadezinhas e fazem assaltos violentos a bancos. Uma série de ação explosiva, que é muito mais sobre família e a herança que corre no sangue do que sobre crime. Produção de altíssimo nível, roteiro que envolve, atuações de arrepiar, um orgulho da porra de ter uma história dessas sendo contada no meu idioma.


Beef

Tá todo mundo a um triz de surtar. A série captura bem o espírito da época, mostrando como o absurdo pode escalar a partir de desentendimentos bestas. Me lembrou meu conto favorito do filme argentino Relatos Selvagens, mas elevado à décima potência. Steven Yeun e Ali Wong entregam tudo e mais um pouco. Ri, me angustiei, fiquei sem fôlego. O ódio às vezes dá a volta e se transforma numa forma bizarra de se conectar profundamente com alguém. Treta não deixa de ser afeto.


Swarm

Tem algo acontecendo nessa safra de roteiros, porque estão vindo umas séries que conseguem entregar muita história em poucos episódios. Em Swarm também perdi o fôlego. Violento, perturbador, aquele jeitinho Donald Glover de evidenciar o absurdo do que nos cerca. Um absurdo que nada de braçada nas águas do horror. Uma fã que idolatra uma diva pop a ponto de arrancar pedaço e de matar em seu nome. “Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, ou eventos reais, é intencional”. É por essas que digo para jamais acreditar no narrador.


Melhor Pedro Pascal

Strange way of life, direção de Pedro Almodóvar

Um filme que eu poderia ter facilmente encomendado para o Almodóvar. Um faroeste sobre ternura e cuidado, com Pedro Pascal encarnando o papel que faz melhor: cowboy com energia de pai. Já vimos isso em Mandalorian, em Last of Us? Sim, mas aqui com o bônus de pegação com o Ethan Hawke, uma jaqueta verde que é um verdadeiro tiro e bunda de fora. Crueldade ser um filme tão curto.

Melhor apelo à nostalgia

“YuYu Hakusho”

Eu estava esperando uma verdadeira bomba, mas a série destruiu minhas expectativas na base da voadora. Os personagens estão ali, muito fieis ao mangá e ao anime que acompanhei com afinco na adolescência. A caracterização perfeita respeitou muito a época e a vibe do original, inclusive nas cores e na ambientação exagerada, que dá o toque de fantasia-espírita-porradeira que a história pede. Fazia tempo não via cenas de luta tão envolventes. Senti falta de várias coisas, mas deu para relevar, considerando que tiveram que resumir uns 300 episódios em cinco. Espero poder ver mais desses personagens. Onde compro ingressos para a segunda temporada? Não conheci o outro mundo por querer!

Melhores personagens

— Dinorá, Cangaço Novo

Um arregaço de mulher, na atuação impecável de Alice Carvalho. Força bruta, temperamento explosivo e não tem perdão para abusador não. Mesmo com tanta dureza, há espaço para revelar um enorme coração. 


Nadja, What we do in the shadows

Ela é vampirona, ela é empreendedora, ela hipnotiza, ela bebe sangue alcóolico um pouco além da conta, ela é fã de Mamma Mia, ela simplesmente domina as cenas com seu sotaque grego e as expressões de flabbergasting que eu amo.


— Bentinho, Dom Casmurro

O personagem é antigo, mas foi este ano que pude entendê-lo melhor. O que o deixou tão casmurro na vida? Sua capacidade de narrar o inconfessável e de me fazer sua amiga leitora me levaram até a escrever uma carta para absolvê-lo.


— Ken, Barbie

Nunca imaginei que o eterno namorado da Barbie fosse me arrancar tantas risadas. A fragilidade masculina representada fielmente. Por mais homens resolvendo seus conflitos de shortinho curto e com passos de dança.

Melhores músicas

Lost Horse, Asaf Avidan

Não tem o que dizer, só sentir. Nascemos para falhar.


Break my soul, Beyoncé

Às vezes é bom dizer em voz alta “você não vai me quebrar”, enquanto lutamos mais um dia para sobreviver ao capitalismo.


— Новое новое, Shortparis

Essa banda foi uma descoberta sonora interessante que 2023 me trouxe. Não entendo uma palavra de russo, mas fico pirando no conceito visual dos clipes. Balé, punk e poesia como forma de enfrentar o nacionalismo que fabrica guerras.

Melhores álbuns

Renaissance, Beyoncé

Beyoncé sempre vem para subir a régua para uma nova escala. A busca por excelência sempre me inspira. A riqueza de sons desse álbum me leva para uma realidade alternativa: espacial, cósmica, alienígena.


Live at Acropolis, Asaf Avidan

Não costumo gostar de versões ao vivo, mas esse álbum me conquistou por completo e me levou às lágrimas. Parece que a música de Asaf Avidan ganhou uma força sobrenatural na Acrópole de Atenas.


New Blue Sun, Andre 3000

O que acontece quando um grande artista se cansa de fazer o que se espera dele? Andre 3000 faz um álbum pirando na flauta, com uma sonoridade e títulos maravilhosos que levam a imaginação para mundos novos.

Melhores escritos

O oceano do não-saber

“Um outro amigo me apresenta a teoria da Ilha do Conhecimento, que aprendeu no livro de um astrônomo brasileiro, Marcelo Gleiser. Ele explica que tudo o que sabemos é uma ilha. O que não sabemos é o oceano. Acontece que essa ilha cresce. Quanto mais saber acumulamos, maior ela fica. Logo, também fica maior a borda que entra em contato com o oceano do não-saber. Daí vem a angústia, de que ainda há muito a aprender e descobrir.”


Amigo de escritor

“Se algum amigo já se sentiu na obrigação de ler o que escrevo, gostaria de esclarecer que espero sinceramente que se sinta sim. Como pode gostar de mim e não gostar do que escrevo? É a mesma confusão que um gato deve sentir quando leva um belíssimo rato morto de presente para seu humano favorito e é recusado com gritos de nojo. Ingrato!”


A solidão da lâmpada acesa

“Devo muito à solidão. É o estado no qual a dúvida comparece, e sem alguém por perto para me dizer que é isso ou aquilo, preciso eu mesma construir a jangada para buscar a resposta.”


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