Tumultuando o debate

As caixas de comentários na internet são o espaço onde a insanidade humana se manifesta em todo o seu esplendor. De portais de notícias a sites que tratam de assuntos polêmicos, passando pelas redes sociais e pequenos blogs de ficção, tumultuar o debate é a regra. Pelo menos é o que acreditam alguns comentaristas, que se engajam em constranger autor e público desviando o foco do assunto para questões que achem mais relevantes, como a corrupção (sempre).

Cada vez mais requisitados devido à grande demanda de textos circulando pela internet, os comentaristas do caos carecem de um arsenal renovado para continuar tornando sua atuação marcante, já que apenas escrever em CAPS LOCK e lançar frases indignadas como “acorda Brasil!” não são mais satisfatórias. De olho neste mercado, o professor Anon lança um curso inédito com táticas sofisticadas e indispensáveis para quem pretende fazer carreira tumultuando debates na internet.

O professor Anon disponibilizou em seu site algumas dicas que aprofundará em seu curso, e que você pode conferir logo abaixo:


1. Use a liberdade de expressão a seu favor

Evocar a liberdade de expressão é o grande trunfo dos dias atuais. Afinal, praticamente ninguém é contra. Logo, a liberdade de expressão autoriza você a criticar o que bem entender. No entanto, se alguém criticar o seu comentário, diga que está sendo patrulhado e que essa crítica à sua crítica é uma ameaça à liberdade de expressão. Se alguém perceber a sua tática, grite “censura! censura!” e saia da situação sem perder a pose heróica de defensor do valor mais precioso da democracia.

 

2. Leve tudo aos extremos

Essa técnica consiste em pinçar um trecho do texto em debate e fazê-lo parecer ridículo. Funciona assim: alguém diz que casamento entre pessoas do mesmo sexo deve ser permitido. Você pode responder que, se isso acontecer, as portas estarão abertas para legalizar relações incestuosas, pedófilas, e até casamento com animais. O horror, o horror! Lembre-se: quanto mais exagerado, melhor.

 

3. Distorça o que está escrito

Bem parecido com a anterior, com a diferença que você não sugere o absurdo; você faz parecer que o absurdo saiu da boca da outra pessoa. Por exemplo, a fala “acho que esse tipo de piada é preconceituosa” poderia ser respondida com: “que absurdo, ele acha que as piadas devem ser proibidas!”. Essa tática é uma das mais eficientes para instaurar a confusão, e fica ainda melhor se você realmente não leu o texto ou não entendeu o que o argumentador quis dizer (ver dica nº 12).

 

4. Junte coisas que não têm nada a ver

Nada melhor para desvirtuar um debate sério do que chegar na conversa misturando e confundido conceitos básicos. Isso obriga as pessoas a pararem a conversa de adultos e terem que argumentar com você, fazendo-as a voltar ao bê-a-bá da questão, que elas já estão cansadas de explicar. Um exemplo é o famoso “se podem usar uma camisa que diz ‘100 por cento negro’, eu posso usar uma camisa que diz ‘100 por cento branco’!”. Outro clássico é o “não sou feminista nem machista”, porque coloca, equivocadamente, o feminismo como o oposto do machismo. Qualquer pesquisa rápida na mesma internet que você está usando para comentar já revelaria o conceito básico correto. Mas para quê pesquisar antes? O objetivo é cansar as pessoas, e usar essa tática funciona muito bem.

 

5. Crie paradoxos

Seu papel não é explicar, é confundir. Faça mentes explodirem com afirmações do tipo: “ao dizer ser contra a homofobia, você está sendo preconceituosa com os homofóbicos!” ou “você está sendo intolerante com os intolerantes!”

 

6. Desinforme

Propague o senso comum, faça estatísticas dizerem o que você quer que digam, tire as coisas de contexto. Diante de dados de homicídio de gays por motivação homofóbica, diga que a quantidade de gays assassinados não é tão grande quanto a quantidade de heteros mortos. Complete dizendo que parte dessas mortes de gays foram causadas, na verdade, por acidentes de trânsito.

 

7. Reclame do que faltou

Se um texto fala sobre X, você pode tentar diminui-lo dizendo que ele não falou sobre Y. É uma técnica genial, pois em 100 por cento das vezes é possível dizer que faltou ao argumentador abranger algum tema relacionado. Assim fica fácil fugir do assunto e, de quebra, você expõe uma lacuna no texto — ainda que, no fundo no fundo, você saiba que não é possível falar sobre tudo em um texto só.

 

8. Menos é mais

Aprofundar críticas pra quê? Em vez de perder tempo tentando apontar o quê há de errado com os argumentos do outro, diga apenas “texto chato”. Ou: “superficial”. É minimalista, é tendência, é finesse.

 

9. Seja o chefe

Diga como o autor deveria ter escrito o texto, que ele deveria ter sido mais sucinto, ou mais sutil, ou sem tantas vírgulas, ou ter usado a palavra “alegre” em vez de “feliz”. Sim, como se você fosse o chefe, afinal, você está pagando para aquela pessoa escrever o texto para você, certo?

 

10. Parta para a porrada

Ad Hominem é a técnica preferida de quem está na segunda série. Mas nunca sai de moda. Agrida o argumentador, diga que ele é bobo, feio, cara de melão, que é presunçoso, um analfabeto, uma vadia, diga que ele bate na mãe, que é petista, que lhe falta louça pra lavar ou uma boa pica, que tem o umbigo estufado e que, tão somente por isso, seu texto não vale nada. Abuse da criatividade.

 

11. Pasqualize

Uma variação do Ad Hominem, só que em vez de atacar o argumentador, você ataca o texto. Foque na ortografia e na gramática e deixe o argumento em questão de lado, afinal, seu objetivo é justamente fugir dele. Aponte os erros de português, a crase que faltou, a vírgula fora de lugar, o acento que não deveria mais estar em cima daquele ditongo. Não é que você se apega a pequenezas desnecessárias; é que uma pessoa que não obedece à norma culta da língua não merece ser levada a sério.

 

12. Pule a leitura

Às vezes, nem é preciso ler o texto inteiro (ou entendê-lo) para dar uma opinião contundente, não é mesmo? É como já dizia um velho sábio: “eu estou na internet pra dar opinião, se eu quisesse ler, estaria na escola”.

 

13. Seja coerente

Agarre-se ao seu ponto de vista até o final. Mudar de opinião é uma fraqueza, algo que deve ser evitado. Para manter-se coerente aos seus princípios, use e abuse de todas as técnicas demonstradas no curso.

As matrículas já estão abertas e o material do curso pode ser acessado gratuitamente aqui. Em entrevista, o professor Anon garante a eficácia dos seus ensinamentos e acredita que, com a ajuda deles, vários comentaristas poderão avacalhar textos e debates internet afora. No entanto, já existem materiais que rebatem as táticas do curso. E nem é preciso muitas regras; os mais preparados já sabem que basta apenas uma: “não alimente os trolls”.

Fotografia da capa: Tom Simpson // Flickr Creative Commons