O casamento é superestimado

Frequentemente me perguntam quando é que eu vou me casar. Estou em um relacionamento há 5 anos e com essa pessoa divido as contas e a cama. Se isso não é estar casada, então não sei o que é.

Para os outros, casamento é outra coisa.

As coisas são o que dizemos que elas são. Se definimos que trabalho é aquilo que fazemos em um escritório, sob a supervisão de um chefe, 8 horas ou mais por dia, 5 dias por semana para ganhar dinheiro até o tão esperado dia da aposentadoria, então teremos pessoas perguntando a escritores, ilustradores, freelancers e músicos: “Tá, mas no que você trabalha de verdade?”

As pessoas nem precisam me perguntar isso. A cara delas quando digo com o quê trabalho já denuncia que elas não acreditam que eu trabalho “de verdade”. E com o casamento é a mesma coisa.

Engana-se quem (eu) acredita que seja a união, reconhecida legalmente, entre pessoas que se amam. O casamento é uma ideia muito maior do que isso, uma narrativa mais repetida em nossa cultura do que a história da Branca de Neve, do descobrimento do Brasil ou de Adão e Eva. E, como uma complexa narrativa, o casamento possui um vasto repertório de personagens, rituais, alegorias e simbologias que precisam ser seguidas para que seja considerado “de verdade”.

 

Tudo começa com a ideia da alma gêmea.

Ouvimos desde sempre que não é possível ser feliz sozinho. Nos filmes, nas novelas, nos livros e em tudo quanto é história há um par romântico que sabemos estar predestinado ao ou à protagonista. Um exemplo do lobby do casório: quantas histórias de princesas da Disney NÃO giram em torno de casamento?

Assim como esses personagens, só estaríamos felizes e realizados ao encontrar essa alma gêmea. Logo, é esperado que você se case com aquele alguém que faz você feliz — como se não fosse absurdo depositar no outro a enorme responsabilidade de fazer você feliz.

Bem, e nessa narrativa repetida há mais tempo do que eu possa imaginar, o casamento é uma coisa mágica que une duas pessoas em uma só. Duas pessoas virando UMA SÓ, gente. Está até na Bíblia: “já não serão dois, mas uma só carne”. Eu acho isso pavoroso. Prefiro continuar sendo eu, tendo minha própria identidade, e estar ao lado de alguém que também tenha a sua. Mas vá lá; a sociedade considera casamento a criação de um monstro de duas cabeças.

“Então você não está casada com a sua cara metade?” Não. Nem ele nem eu somos metades. Somos seres humanos inteiros. Por experiência, aprendi que não há cilada maior do que buscar alguém que precise de mim para ser completo e ainda esperar que essa pessoa me faça feliz.

 

“Casamento tem que ser na igreja”

Toda essa história de encontrar alguém que nos faça feliz, uma alma gêmea feita para nos completar, reveste o casamento de uma aura mística que as religiões costumam explorar. Afinal, uma união tão especial tem que ser eterna, e para ser eterna tem que ser celebrada numa igreja, diante de deus, certo?

Ninguém precisa ser religioso para saber cada detalhe de um casamento na igreja. Está nos filmes, nas novelas, nos livros, nas revistas, em todos os lugares. A noiva de branco, entrando na igreja levada pelo pai; a marcha nupcial; os convidados acompanhando emocionados o pai entregar a noiva para o noivo, como se fosse uma posse; a troca de alianças; os votos; o momento em que se tem alguém contra o casamento que fale ou se cale para sempre; o “até que a morte os separe”, o “eu os declaro marido e mulher” e o “pode beijar a noiva”, roteiro decorado como fala de filme que a gente assistiu mais de vinte vezes.

Os problemas quanto a isso são dois, e não tem nada a ver com a cerimônia em si ou com quem ESCOLHE se casar assim. 1) Todos esperarem (e cobrarem) que você faça o mesmo, seguindo o roteirinho de subir no altar para se casar, mesmo que você não queira, mesmo que você não veja o menor sentido nisso. 2) A igreja deter o monopólio sobre o casamento, não aceitando como verdadeira qualquer união que fuja desse roteirinho.

Dispensar a aprovação da igreja nesse aspecto da sua vida não é o suficiente; ela, não satisfeita, tenta interferir nas leis CIVIS para impedir qualquer tipo de casamento que não a agrade.

“Esse negócio de se casar com uma pessoa do mesmo sexo não está no script! Meu deus, vocês estão estragando nossa historinha mágica! Han? O quê? Eles não vão se casar na igreja? Ah, não importa, o casamento é propriedade nossa! E se a gente não foi convidado para a festa, aí é que não vamos permitir que se casem MESMO. Hmpf.”

 

Será que é tudo pela festa?

Perguntaram para o meu sogro quando é que ele ia tomar vergonha na cara e se casar “de verdade” com a mulher com quem já vive há anos. É claro que a resposta que esperavam era quando seria a festa de casamento. Então ele respondeu: “Mas a gente casou. No cartório, sozinhos.” Achei genial.

Começo a suspeitar que só existe toda essa cobrança para que o casamento seja como manda o figurino porque esse roteiro inclui uma festa. E quase todo mundo adora festa. Então, quando me perguntam quando é que vou me casar, devem estar querendo saber mesmo é “quando você vai pagar para eu me empanturrar de bebida e coxinha de catupiry, dançar até cair, comer bolo e posar para as fotos com o vestido novo que eu não vou poder usar em outra ocasião?”

Então talvez seja por isso que tanta gente fica brava com casamento de pessoas do mesmo sexo: porque sabem que homofóbicos não serão convidados para a festa.

 

A grande dificuldade, afinal, é aceitar o diferente.

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Danielle Madeley // via wikimedia commons

A vida é um roteiro com cenas bem definidas, em que cada um de nós recebe um papel. Quem transgride esses papeis um tiquinho de nada é rejeitado. Porque olham para a vida do “diferente” e não conseguem entendê-lo. Não conseguem encaixá-lo em rótulos que já conhecem. Aí o cérebro trava.

Porque tudo isso é sobre o furor das pessoas que tentam, a todo custo, enquadrar o outro numa norma própria. Medir o mundo usando a si mesmo como régua.

Quem é que vai dizer que eu sou casada “de verdade”? Uma festa de casamento? O papa? Uma aliança no dedo? Um pedido de noivado? Um status de relacionamento no Facebook? Pelo menos nos meus documentos, o que vai dizer é uma certidão. Mas e na minha vida pessoal? Quem é que tem o direito de determinar isso? Minha família? Você?

E a principal questão: por que isso importa?

Tudo isso é superestimado. Especialmente a diferença que faz para os OUTROS algo que é, ou pelo menos deveria ser, totalmente PESSOAL.

Fotografia da capa: Irina Patrascu // Flickr Creative Commons