A história apócrifa do e-book

No início havia o verbo; e logo apareceu quem o conjugasse para escrever histórias. Metidos no meio do deserto, onde escrever era menos cansativo do que ficar debaixo de um sol desgraçado de 50ºC cuidando de rebanho, fizeram proliferar seus contos e fábulas para entreter a população. Entre poesias, contos eróticos, fofocas e sagas épicas, escreveram 46 livros. Um dos autores então pensou: “isso dá uma antologia!”

Logo os outros autores e autoras se empolgaram com a ideia. Sempre quiseram ser escritores profissionais e sair do submundo de fanfics e da blogosfera hebraica. Aquela parecia ser uma excelente oportunidade. Juntaram seus livros e mandaram o manuscrito para uma editora na cidade grande. A editora, no entanto, estava mais interessada no mercado literário egípcio e publicava apenas histórias escritas para o público que lesse hieróglifos. O editor mandou uma carta de recusa ao material, argumentando que a coletânea não tinha potencial, que a mitologia era fraca, que as histórias não eram muito coesas entre si e que “Conjunto de Livros” não era um nome com apelo comercial.

Chateadíssimos com a recusa, mas jamais dispostos a desistir, os autores e autoras logo chegaram à conclusão: editora pra quê?

“Lancemos independente”, disse um. Mas como arcar com o papel, com a impressão, com a distribuição? “Lancemos em e-book”, respondeu outro, lembrando do melhor amigo dos autores independentes. A resposta soou agradável especialmente porque poderiam, desta forma, tornar seu trabalho mais acessível. A antologia, que logo passou a ser chamada de “Bíblia” (tiveram que admitir que o editor tinha razão quanto ao título) poderia ser lida por todo o povo: pelos assírios em seus celulares; pelos hebreus em suas tablets; pelos caldeus em seus kobos; pelos cananeus em seus kindles; e por todo filho de Deus sob o sol em seus computadores.

Além disso, o e-book já fazia parte da tradição de seu povo há anos. Hoje dizem que Deus entregou suas leis a Moisés em tábuas contendo os 10 mandamentos; mas é claro que não passou de um erro de tradução cometido séculos mais tarde. Não foi numa “tábua”, e sim numa “tablet”. Afinal, Deus é digital (já que está nas nuvens) e fazia muito mais sentido transmitir os mandamentos em pdf. Ou você acha mesmo que um idoso ia conseguir carregar um monte de tábuas montanha abaixo? Uma tablet é muito mais leve.

Pelo volume da obra que aquele grupo de autores independentes ajuntou, também fazia muito mais sentido publicar em e-book. A quantidade absurda de páginas contidas nos 46 livros juntos nem eram sentidos quando seus leitores abriam a Bíblia em seus dispositivos de leitura. Se fosse impressa, teriam que dividir o texto em colunas e imprimir com letras bem pequeninas, num papel fininho de dar dó, fazendo da leitura um verdadeiro sacrifício (dsclp Abrãao). Mas no e-book os leitores podiam aumentar o tamanho da letra e o espaçamento entre as linhas para ler da forma mais confortável possível.

Encontrar os livros naquela imensidão de conteúdo também era mais fácil. Bastava ir ao índice e, em um clique, selecionar o livro e o capítulo que gostaria de ler. Não tinha nada que ficar dedilhando a lateral das páginas para achar as marcações de cada livro. A um toque de distância também estava o acesso ao dicionário e às notas dos autores, para facilitar o entendimento das histórias ali contadas.

Muito tempo depois desse lançamento bem-sucedido, e antes das polêmicas sobre biografias não-autorizadas, quatro escritores resolveram lançar, cada um, uma biografia de um figurão da época. Como os quatro eram bróders, inclusive tendo conhecido pessoalmente o biografado, resolveram publicar juntos as suas versões de “Vida e Obra do Barbudo Mais Polêmico de Nazaré” – que depois rebatizaram de “Evangelho”.

Como a esta altura a Bíblia anteriormente lançada já tinha entrado em domínio público, reeditaram a coletânea de forma que os 4 volumes biográficos fizessem parte dela, como uma versão estendida. Entenderam que aqueles livros serviriam de “prequel” para a obra que queriam lançar. Outros autores sugeriram um material complementar, incluindo uma distopia apocalíptica que iria super atrair o público adolescente, e assim fizeram o lançamento, também em e-book.

Com esta versão vitaminada do e-book que já tinha sido um sucesso de público na Terra Santa, os evangelistas pretendiam expandir o alcance de sua obra. Tanto é que começou a viralizar lá em Roma, povo muito mais chegado num reality show de gladiadores do que em livros. Mas a nova Bíblia agradou a elite romana e foi um sucesso de vendas. Por essa razão, editoras começaram a crescer o olho para cima desse livro e fizeram várias propostas para os detentores dos direitos autorais. Conseguiram comprar os direitos, reeditaram toda a obra e lançaram impresso, na versão que foi sendo reeditada e retraduzida até a versão que conhecemos hoje.

Nessa compra de direitos, a versão em e-book lançada de forma independente se perdeu. Alguns dizem que nunca existiu, ignorando o evidente e inquestionável início de carreira independente dos autores dos 46 livros originais. Muito embora os nomes dos autores bíblicos tenham sido apagados da história, sendo a autoria da maioria dos livros considerada anônima e a autoria de outros sendo questionada, o e-book permaneceu firme e forte levando a palavra (de todo tipo de literatura) aos leitores de boa vontade.

Mas a origem do e-book é ainda anterior aos primeiros escritos bíblicos e, depois disso, ainda serviu a muitos outros propósitos importantes na história da humanidade. Pena que isso vai ter que ficar pra próxima.

Esta é uma obra de ficção. “A história apócrifa do e-book” não tem nenhum compromisso com fatos reais, assim como a Bíblia.

Não sabe o que é um e-book? Conhece, mas só de vista? Tem dúvidas? Nojinho? Curiosidade? Leia este texto: “Muito prazer, eu sou o e-book”.

Se gostou de imaginar uma história diferente para a Bíblia, dá uma lidinha neste outro conto que escrevi: “A reinvenção da Bíblia”.

Contribua com uma autora independente comprando meu e-book aqui: Livros da Aline Valek.