A escolha pelo difícil

n2ão existe tema confortável na escrita. Por isso me revirei na cadeira incomodada quando soube que precisava escrever um texto sobre o que eu quisesse; um parque de diversões com um letreiro em neon piscando com as palavras tema livre. O que não contei é que parque de diversões e tema livre são espaços que, em vez de me deixar empolgada com as mil e uma possibilidades, são lugares que me dão vontade de sair correndo.

Que me mandassem escrever sobre a Rússia nos anos 80, sobre as preferências sexuais dos chimpanzés, ou sobre qualquer tema espinhoso que exigisse esforço, porque daria na mesma. É tão difícil escrever sobre as coisas que gosto e conheço quanto escrever sobre temas de que não entendo e dos quais eu não saberia absolutamente nada se não tivesse que pesquisar para escrever sobre.

Então resolvi falar sobre a zona de conforto. Um lugar quentinho e familiar, onde temos o controle de todas as variáveis, onde nada pode nos machucar, onde somos as melhores naquilo que fazemos. Um lugar confortável e fácil que, creio eu, não existe na escrita.

Quem se propõe a escrever, seja o que for, está renunciando à toda tranquilidade e calmaria no exato momento em que põe a primeira palavra no papel ou na tela. Porque escrever, não sei se você já pensou nisso, é um ato completamente anti-natural que brota do incômodo, do desconforto e da curiosa mania humana de ficar criando coisas só para ver o que acontece. Se fosse para sermos naturais e ficarmos confortáveis, estaríamos deitadas na grama fazendo sexo como chimpanzés, vivendo do que a natureza dá pra gente.

Mas fizemos nossa escolha há muito tempo. Escolhemos o difícil.

Lembro de uma das primeiras vezes em que me pediram para escrever sobre o que eu quisesse. Foi na quinta série, numa atividade de redação da aula de Português, numa dessas ocasiões em que aposto que a professora não planejou nada e resolveu colocar a gente para escrever e ler nossos textos até dar o tempo da aula acabar.

No início fiquei empolgada e vi a tarefa como um desafio; se eu podia escrever sobre qualquer coisa, significava que eu tinha que ir longe buscar uma ideia, algo que ninguém esperava.

Foi o que eu fiz. Foi um desastre.

Percebi que eu não tinha entendido o objetivo do exercício quando ouvi os primeiros colegas lerem seus textos: eles escreveram sobre o que gostavam de fazer no fim de semana, as músicas que gostavam de ouvir, os lugares que gostavam de visitar. Então entrei em desespero quando a professora pediu para que eu lesse minha redação.

Escrevi sobre clonagem. Sobre a ovelha Dolly, sobre seres vivos sendo copiados, sobre a implicância ética disso, especulando o que aconteceria quando pessoas começassem a ser clonadas também. Praticamente um conto de ficção científica; ninguém entendeu nada.

ovelha_dolly

Desde então, só conheço essa forma de escrever: buscando o difícil, ou algo que não conheço, algo que me incomoda ou que me intriga. Não há assunto fácil, mesmo que eu já tenha escrito sobre ele uma porção de vezes; aliás, é justamente quando tenho alguma familiaridade com o tema é que a dificuldade aumenta, porque me vejo impelida a buscar algo novo ali dentro, a enxergar a questão sob um novo ângulo.

Fácil é escrever receita de bolo, todo o resto cai naquela área perigosa fora da zona de conforto.

E é nesse momento em que nós até gostamos de de nos sentirmos especiais, nós que escrevemos. Porque essa necessidade quase fisiológica de escrever nos lança em um mundo desconfortável, onde vivemos às voltas com ~nossas angústias, nossas questões complexas, e nossa incapacidade de lidar com a realidade~ porque carregamos o gene da criatividade e todo o ~sofrimento~ que vem junto no pacote.

Mas não acho que a dificuldade de escrever torne especiais as pessoas que escrevem. Apesar de toda glamourização com que gostam de revestir a escrita, essa é uma das vocações mais primitivas e humanas: contar histórias.

primeiras_históriasHá muito tempo, antes de qualquer uma de nós nascer, muito antes da internet, das cidades e até mesmo da civilização, já haviam pessoas fazendo o mesmo que nós. Elas se reuniam em torno de uma fogueira, em alguma noite quente e cheia de insetos, e com a pouca linguagem que tinham contavam suas histórias.

Toda noite era noite de tema livre, porque na época não existiam redes sociais para elas se guiarem pelas polêmicas da semana; mas não era por não terem temas definidos que falavam sobre o que era fácil e confortável.

Algumas narravam as caçadas, os quilômetros que correram até os antílopes ficarem cansados demais, até serem pegos por suas lanças. Outros falavam dos perigos dos predadores, de como conseguiram escapar dos dentes de um grande felino. Outros ainda lembravam da última grande tempestade, do vento carregando galhos, de árvores pegando fogo. Histórias sobre coisas difíceis, sobre coisas que esses nossos ancestrais não entendiam muito bem.

Mas foram essas grandes dificuldades os temas de nossas primeiras histórias. Caçadas, violência, sobrevivência e fenômenos naturais desconhecidos foram as coisas que nos impulsionaram naqueles dias, que foram consideradas suficientemente interessantes e importantes para que as registrássemos em tinta e sangue em nossas paredes e as passássemos adiante a cada noite em volta da fogueira.

As histórias eram contadas por quem sobrevivia – e é exatamente isso o que repetimos até hoje quando escrevemos e contamos nossas histórias, inventadas ou não. Herdamos de distantes pessoas pré-históricas a necessidade de contar aquilo que nos incomoda, narrar o que nos angustia, buscar decifrar com a linguagem aquilo que nos é desconfortável.

A lembrança desses nossos ancestrais que nunca tiveram que escrever redação na escola e já dominavam tão bem a arte da narrativa me lembram que a inclinação para contar histórias é inerente ao ser humano, a todos eles, e que eu escrever não faz de mim alguém especial – o que é sempre bom lembrar.

Além disso, essa histórias de pessoas que viveram bem antes de existir qualquer zona de conforto me lembra que, se algo é difícil de escrever, incomoda e exige esforço, ótimo. É assim mesmo que acho que a escrita deve ser.