Alcione e os robôs

Franz Schubert morreu aos 31 e deixou sua Oitava Sinfonia inacabada. 191 anos após sua morte, numa audiência em Londres, uma empresa de tecnologia apresentou uma versão da obra finalizada por um algoritmo.

Nick Cave diz que uma Inteligência Artificial jamais conseguirá escrever boa música, porque o que realmente ouvimos numa música é a limitação humana e a audácia de transcendê-la.

O Tarrask, que é pró-robôs, diz que fazer boa arte é questão de aprendizado e máquinas já aprendem muito mais rápido que nós.

Eu discordava. Disse algumas vezes que nada que não possa morrer vai conseguir criar boa arte. Claro, porque advogava em causa própria (eu posso morrer).

Esses dias, um amigo trouxe a uma conversa a teoria de que, se você pode, por exemplo, sair de férias e deixar uma lista de instruções com os seus afazeres no trabalho e a pessoa que te substituir realizar bem essas tarefas, muito provavelmente, no futuro, este trabalho será executado por um robô.

Nesse encontro, defendi — com a veemência de quem havia tomado três taças de vinho — que robôs até poderiam substituir grande parte dos trabalhos que existem hoje, mas jamais conseguiriam criar arte, porque apenas quem pode experimentar a morte é capaz de criar ARTE!

Muito convicta.

Até ouvir com atenção Não deixe o samba morrer, da Alcione.

Escuta também:

A música ganha uma roupagem sci-fi se imaginarmos que a urgência no canto de Alcione vem da beira da existência da humanidade, prestes a ser extinta por algum dos vários motivos que continuamos a criar para nos destruir.

É um grito de socorro: estamos condenados, não iremos sobreviver, mas alguém salve o samba, pelo amor de deus.

Quando eu não puder
Pisar mais na avenida
Quando as minhas pernas
Não puderem aguentar
Levar meu corpo
Junto com meu samba
O meu anel de bamba
Entrego a quem mereça usar

Nesse trecho, a Humanidade reconhece que um dia seu corpo não será mais capaz de prosseguir, de levar o legado do samba adiante. O corpo humano é frágil, limitado, não terá condições de continuar nessa avenida chamada Terra por muito tempo.

Nesse caso, a arte deverá morrer junto conosco? Não, decide a voz interpretada por Marrom; está disposta a entregar o bastão da arte a quem for capaz de dar continuidade a ela.

Não diz que precisa ser humano.

Eu vou ficar
No meio do povo, espiando
Minha escola
Perdendo ou ganhando
Mais um carnaval

Ficar no meio do povo espiando, claro, fica como o desejo inútil de sermos imortais, de estendermos a duração de nossa existência, o que tentamos desde sempre por meio da arte.

Mas, extrapolando esse cenário, e imaginando os homo sapiens prestes a serem extintos pela própria burrice e teimosia, já não importa se nossa escola (nossa tribo, nossa identidade, nossa espécie) vai ganhar ou perder; vai todo mundo perder. O que importa é que a arte sobreviva a nós.

Antes de me despedir
Deixo ao sambista mais novo
O meu pedido final
Não deixe o samba morrer
Não deixe o samba acabar
O morro foi feito de samba
De Samba pra gente sambar

O sambista mais novo: uma Inteligência Artificial que aprendeu conosco a fazer samba? A perpetuar, por meio de um corpo mais duradouro e mais resistente às condições inóspitas de um planeta devastado ou à solidão de viagens espaciais, a arte que nos dedicamos a criar no breve período em que existimos?

Apenas robôs, que não podem morrer, serão capazes de finalizar todas as obras que não pudemos porque morremos de formas banais e estúpidas.

Como fizeram com Schubert.

Alcione me fez concordar com Tarrask. E com Chico Science.

Não só computadores serão capazes de fazer arte, como será necessário ensiná-los a fazer. Pra quê? Com qual objetivo?

Sei lá. Arte nunca precisou servir pra alguma coisa. Ser útil.

Samba só foi feito pra sambar.

Divulgação / Eliseu Fiuza