Imitação é uma forma de amor

Originalidade, no sentido de criar algo único, singular, é uma ilusão. O processo de criação é, por natureza, plural.

Significa que um artista cria uma obra não a partir do zero, como se fosse capaz de materializar coisas do ar; mas a partir de suas experiências de vida, de suas observações do mundo, das suas referências artísticas, das pessoas que conhece, das conversas que participa, da cultura onde se insere.

Se há genialidade, arrisco dizer que ela mora na habilidade de misturar esses ingredientes e experimentar diversas combinações até chegar a algo inusitado, que encante os sentidos. Buscar associações menos óbvias, ou apresentá-las de uma forma que ainda não tenha sido feita.

As estrelas já estão no céu; o máximo que podemos fazer é criar os desenhos que ligam um ponto ao outro.

Todas as pessoas que me alimentaram passaram a fazer parte de mim. Fagocitei. Processei a partir das minhas experiências, do meu lugar no mundo. Virou memória. Virou meu. Quando sair de mim, já será outra coisa. Uma mistura de DNAs. Um código de alguém emendado com algum código meu, que depois será misturado novamente a outro código. Uma mensagem que se transforma a cada novo receptor que encosta nela, mas que, ao final, aponta para o mesmo sentido: precisamos umas das outras.

Os autores que me marcaram foram aqueles que passei a tentar imitar. Engulo os pedacinhos, deixo agir no organismo. A imitação é uma forma de amor: é trazer para o meu corpo – incorporar – os artistas que amo. É uma tentativa, não de me tornar igual, mas de me aproximar. Trazer para o meu repertório. Como quem tenta imitar os gestos de uma coreografia para ensinar ao corpo movimentos novos.

É uma dança. Meus escritores favoritos me chamam para dançar quando encontro em suas histórias qualquer coisa que me acenda faíscas. E eu vou. Do meu jeito, com passos menos graciosos, distribuindo pisões de pé aqui e ali, mas experimentando. Aprendendo. Deixando a música me levar. Me perdendo no caminho.

fotografia de uma mulher segurando um espelho retrô, de cabo azul,  frente de uma parede cor de vinho. No reflexo do espelho, aparece o rosto de uma mulher chinesa, com a franja cortada bem reta.
Fotografia de duas mulheres fazendo o mesmo movimento, apoiadas sobre um joelho só, meio agachadas, sendo vistas de costas. Usam o cabelo curto, preto e bem liso. Uma usa o vestido de camurça marrom sobre uma blusa de mangas longas preta e uma meia-calça azul pastel. A outra usa um vestido preto sobre uma blusa rosa e meia-calça amarela. Elas estão olhando para a mesma parede cor de vinho.

Fotografias de Nhu Xuan Hua.

O processo de incorporar referências é uma curadoria. Seleciono o que acho bonito, o que acho poderoso, tudo o que quero que não se perca e passo adiante, tatuando no avesso de tudo o que faço.

É uma conversa. Cada história que conto é minha contribuição ao papo. Não é uma conversa restrita aos gênios, não é (ou não deveria ser) uma competição com o objetivo de eleger vencedores, os mais originais, os mais singulares. Sempre há os que se destacam, mas todo protagonismo é temporário. Na roda, cada um tem a sua vez. Da conversa, surge beleza. Surge novidade. Surgem as novas conexões.

Sei que o mundo vende que legal mesmo é ser precursora, é ser a melhor, é ser a inigualável. Mas que beleza é me perceber como apenas parte de uma conversa que começou há muito tempo, e que vai continuar muito depois de mim, enquanto houver linguagem.


Obviamente que copiar é outra história.


Texto originalmente publicado na edição de agosto de 2020 da newsletter Uma Palavra. Assine grátis aqui: